2 de Maio de 2018. António Costa está no Canadá.

Em Lisboa começa a peça “Vergonha de Sócrates”.

Os actores são os mesmos da peça anterior “Tudo por Sócrates” que já fora antecedida pela performance épica: “Sócrates estamos contigo”.

A qualidade do desempenho é a mesma d’ Os Grandelinhas no “Pai Tirano”: ainda com ar de quem está a memorizar o texto, os actores entram em cena. No caso os actores são Fernando Medina (no papel de candidato a sucessor do sucessor), Carlos César (que protagoniza o candidato a candidato), Ana Catarina Mendes, João Galamba, Santos Silva e demais personagens vestindo a pele dos envergonhados por e com José Sócrates. E depois temos o sempre dúbio António Costa. Toda esta performance da vergonha acontece enquanto António Costa está no Canadá. E é no Canadá, não sei se desnorteado com as memórias do primeiro-ministro daquele país sobre o campismo selvagem que fez em Portugal  ou se temendo que Trudeau insistisse naquela mania de envergar as vestimentas de países exóticos e ainda se vestisse de pauliteiro de Miranda, que António Costa declara: “fui apanhado de surpresa pelas afirmações de Carlos César”  

Das duas uma: ou António Costa é parvo e se deixou ultrapassar pela direcção do PS que ardilosamente teria esperado pela sua visita ao Canadá para dar esta espécie de golpada. Ou quer fazer de nós parvos e espera que acreditemos no que lhe for mais conveniente a cada momento.

Confesso que até este Maio de 2018 só tinha visto uma coisa desta natureza naqueles filmes sobre o despertar dos lemmingues, aqueles roedores que sem mais nem quê, num dia que só eles sabem determinar, enchem a tundra até então deserta. Tal como no caso dos lemmingues é inevitável para perguntar: porque aparecem todos ao mesmo tempo? Como sabem que chegou o momento de acordar?

Para os lemmingues a explicação será simples: chegou a Primavera ao Ártico. Mas para os socialistas portugueses qual foi o sinal de que tinha chegado a hora de se demarcarem de Sócrates? As próximas legislativas? Não chega como justificação. O receio de serem ultrapassados por um Presidente que cavalga toda a onda do que lhe reforce a popularidade? Em parte, mas também é insuficiente como explicação para aquele entra e sai de cena dos “envergonhados”. O receio de novas revelações ainda mais comprometedoras para o PS que as agora dadas a conhecer sobre Manuel Pinho? Quiçá, mas ainda assim é pouco para tal movimentação de tropas.

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Só o tempo nos dirá se aquela encenação a que assistimos esta semana resultou de alguma destas explicações, da soma de todas elas ou de algo ainda não mencionado. Mas uma coisa é certa: aquilo que vimos nada tem a ver com vergonha. Se quisermos insistir no conceito da vergonha terá sim a ver sim com a falta dela. Esta gente que agora se diz envergonhada pelos actos de José Sócrates nunca se questionou durante anos e anos perante os licenciamentos do Freeport (a culpa era da Manuela Moura Guedes, não era?) e da Nova Setúbal (a propósito, Capoulas Santos também está envergonhado?) Não se inquietaram com os contornos mais que obscuros da construção do aterro da Cova da Beira. Depois chegou o curso ao domingo, com exames por fax e outras bizarrices e nenhum destes indignados estremeceu. Muito menos se lhes conheceu qualquer preocupação pelo facto de nenhuma editora ter ousado publicar a investigação de Balbino Caldeira sobre a licenciatura de Sócrates. Será que em privado tentaram perceber como era possível um diploma datado de 1996 apresentar um indicativo de número de telefone que só foi criado em 1999? Ou que mão colocou dois registos biográficos de José Sócrates na Assembleia da República? Em seguida veio o rocambolesco processo das casas da Guarda, a tentativa de compra da TVI, o Tagus Park… E eles sempre calados perante os factos e vitoriosos ao lado de Sócrates.

Nos governos, no parlamento ou no partido eles não só apoiaram Sócrates como também atacaram todos aqueles que questionavam o comportamento do líder do PS. A cada novo caso logo surgia um rótulo a denegrir os que questionavam a forma de actuar de Sócrates: eram os tempos dos bota-abaixistas, dos tremendistas, do negativistas, dos pessimistas e do “jornalismo de sarjeta”.

Independentemente da razão ou das razões que determinaram a representação a que assistimos esta semana estamos perante um exercício de sobrevivência política por parte daqueles que estiveram com Sócrates e que, ao contrário do que agora pretendem fazer passar, não só não ignoravam os casos em que este estava envolvido como também foram politicamente seus cúmplices: de modo algum Sócrates teria chegado onde chegou caso António Costa, Fernando Medina, Carlos César, Ana Catarina Mendes, João Galamba, Santos Silva… tivessem manifestado a sua condenação ao que se sabia do comportamento de Sócrates. E aquilo que se sabia ultrapassava várias vezes os limites do aceitável!  Agora os mesmos que o defenderam quando o deviam ter confrontado dizem-se envergonhados. Envergonhados por ele claro e nunca por si. Esta gente, ao contrário de Sócrates, é cautelosa e salva sempre a pele. Não duvido que  dentro de anos veremos alguns destes protagonistas declarando a sua vergonha por aquilo que o PS cedeu politicamente para que António Costa se tornasse primeiro-ministro em 2015.

PS. Em Espanha cresce a revolta com a Justiça por causa da sentença  do caso de La Manada, um grupo de cinco homens, com idades entre os 24 e os 27 anos, que nos Sanfermines de 2016, empurraram uma jovem de 18 anos para dentro do portal de um prédio e penetraram-na seis vezes sem a sua autorização. O tribunal condenou-os a nove anos de prisão, sendo que os cinco homens estão presos desde 2016. A revolta instalou-se porque se esperava uma condenação por violação e não por abuso. Ministros, líderes partidários, associações, jornalistas, freiras de clausura  e até a ONU têm manifestado o seu repúdio pela decisão  do tribunal espanhol.

No mesmo ano de 2016, na Finlândia, um homem de 23 anos teve relações sexuais com a menina de dez anos, no pátio de um prédio abandonado. Em 2017, o homem foi condenado a três anos de prisão por abuso sexual agravado, tendo prevalecido o argumento de que não se tratou de uma violação. Posição que agora foi subscrita pelo Supremo Tribunal daquele país.

Dos membros de La Manada conhecemos os rostos, os nomes, a vida. E pelo menos do ponto de vista mediático pode concluir-se que para seu azar são espanhóis. Pois se em vez de José Ángel Prenda, Alfonso Jesús Cabezuelo, Ángel Boza, Jesús Escudero e Antonio Manuel se chamassem Juusuf Muhamed como acontece com o agressor da Finlândia, tivessem nascido num país que as autoridades não identificam (alguns jornais dizem que se trata do Paquistão) e tivessem pedido asilo certamente que apesar dos actos hediondos que praticaram, as notícias seriam bem mais escassas e as indignações muito mais controladas.