1. Vasco Rocha Vieira, António Barreto, Francisco Balsemão e Artur Santos Silva não estavam nas mesmas zonas geográficas, nos mesmos locais, não se ocupavam das mesmas coisas, nem partilhavam exactamente os mesmos credos políticos no dia 25 de Novembro de 1975. Só um certo (e provavelmente intenso) sentido de pátria os unia no mesmo grau de sintonia e de imperativo de intervenção. O mesmíssimo que ontem, quarenta anos depois – com o país a passar ao lado da data e o Parlamento a ostensivamente ignorar o seu legado – lhes conduziu a memória no testemunho que deram.

Foi na Fundação Gulbenkian no encerramento de um ciclo comemorativo da passagem destas quatro décadas, organizado por três ou quatro patriotas (Rocha Vieira, Barreto, Braga da Cruz) e tendo eu participado no painel anterior, felizmente, estava lá.

Sentada ao lado de Francisco Sarsfield Cabral, Mário Mesquita, Dinis Abreu e José Manuel Fernandes revi, recordei e retive tudo o que não deve ser esquecido na companhia de gente que no palco ou na plateia, não fez de conta que não era nada com ela.

Lidar com a memória, como bem sabemos, é exercício arriscado, armadilhado por natureza. E sabe Deus como o ar do tempo abriu hoje ardilosos alçapões numa data que os deveria expulsar, como aos vendilhões do templo. Nenhum daqueles cavalheiros caiu porém em alçapão algum, pelo contrário: em época de acinte e de divisão, foi um deleite reencontrar um mesmo “tom” na qualidade intelectual, cultural e civilizacional que emoldurou cada uma das intervenções. (no caso de Barreto, tratou-se de desassombro).

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Mas isso, já sabíamos, não é de hoje: por alguma razão se destacam no mural português. O que me parece muito mais interessante sublinhar é terem-se eles dado ao trabalho de ter ido ali. Com agendas pesadas e responsabilidades várias, alguma coisa os fez parar as vidas e olhar para Portugal, com uma data nua a crua lá dentro. No Parlamento por exemplo, não houve esse luxo. Preferiu-se rever a história para não incomodar os newcomers. E pensar que o PS forjou grande parte da sua matriz e da sua identidade naquilo que há dias se celebrou – e lembrou – na Gulbenkian. E pensar que foi Mário Soares quem ia na dianteira civil da liderança dessa epopeia do ano de 75…

2. Eu também me lembro de tudo. Vivi na primeira fila a vertigem tumultuosa daqueles meses que nunca tinham dia e noite, era um tempo continuo de excesso e desconcerto. No meu caso passava os dias nos quartéis ou no Conselho da Revolução, que era para onde no Expresso, o dr. Balsemão, me mandava.

O desconcerto e o excesso tinham a assinatura de uma ínfima parte de Portugal que em confronto com a outra, impunha mais que propunha, um modelo e uma pátria que nunca aqui poderia ter lugar. Mas que era imperativo que parecesse que podia. Pelo menos antes de concluído com êxito o “D” de “descolonizar”. Tudo o que vi na época e ouvi de então para cá, mostrou-me como o “terceiro dê” parecia ser o ponto fulcral de tudo e basta recordar que a demissão de Spínola no final de Setembro de 74, tinha a África ex-portuguesa em pano de fundo. Ou que só após a independência da jóia da coroa do império português, ocorrida em Luanda a 11 de Novembro de 1975, foi possível deitar mãos à vida, pensar na democracia e cuidar da normalidade. Numa palavra tudo se faria para que o último “D” fosse o primeiro. Concretizando-se além Atlântico, nem que isso significasse deste lado do oceano, a demora convulsiva em dotar o país das liberdades , direitos, regras e instituições que formam e informam um Estado de direito.

Depois, em plena tormenta, houve aquele milagre “autorizado” por Costa Gomes contra as correntes da maré radical e subitamente o país real encaixou-se no resultado saído das urnas das (extraordinárias) eleições de Abril de 75: o “milagre” revelou, inteira e nítida, a fotografia da vontade política de um povo, os portugueses queriam prosaicamente ser governados com moderação e habitar um Estado de direito.

Toda a grande imprensa internacional rumava ao Expresso. A rua Duque de Palmela era um porto de abrigo para incrédulos directores de media a quem Francisco Balsemão tentava explicar essa quadratura do círculo que era um país ocidental (e da NATO) onde eleições ordeiras e resultados abertos à democracia coexistiam com um demencial processo revolucionário em curso. Das ocupações selvagens à quase asfixia de Lisboa, por tratores e “pesados” que levou, Soares, Sá Carneiro e Freitas do Amaral – e o ouro do Banco de Portugal, que também seguiu viajem – para o Porto por se temer com alta verosimilhança a “comuna” de Lisboa, o cerco (e o circo) não falharam. Durante quinze alucinados meses, foram-se cumprindo os capítulos da cartilha revolucionária: reforma agrária explosiva; lutas perigosas pelo controle sindical; greves diárias; assalto e roubo de embaixadas “ocidentais” acreditadas em Lisboa; prisão de capitalistas, patrões e empresários, seguida da nacionalização de todo o tecido económico português; ocupação da Rádio Renascença; tentativa de silenciamento do quotidiano “A República”; entrada em cena dos estimáveis SUV – Soldados Unidos Vencerão; obscenidades apelidadas de “sevícias”, cometidas por militares tresloucados numa cadeia do Porto; “exércitos” de civis revolucionários impedindo a entrada de simpatizantes do PS e PSD em comícios… Sim, “isso tudo”, que vivíamos nas redações e fora delas, entre o possível e o impossível. Mas quem se lembra do “isto tudo”?

Sucede que não fora o PS na rua, e obviamente o “Grupo dos Nove” de Melo Antunes – fortemente acolitado por Jaime Neves e Vasco Lourenço –, militares aos quais o voto de Abril de 1975 conferira verosimilhança e substância – e “isto tudo” não teria teria tido um epílogo tão ameno. Nem – ainda menos – uma balbuciante democracia pluripartidária, civilista e ocidental teria jamais despontado nos teclados AZERT ou HCESAR das nossas máquinas de escrever.

3. Tenho a pura noção de que ter vivido tudo isto no Expresso fez de mim não só uma jornalista, mas uma privilegiada. Contámos a democracia como mais ninguém no país.

Politicamente o 25 de Novembro foi aplaudido por noventa por cento dos portugueses, mas não por noventa por cento dos jornalistas. Como de certa forma ainda hoje ocorre.

E ocorre porque a semente da fronda, plantada em 1974, nunca deixou de ser obsessiva e doentiamente adubada desde então. Uma semente simples, aliás, pequena, barata, fácil de deitar a terra: à legitimidade de uns para escreverem e dizerem, nunca correspondeu a natural legitimidade dos outros. Os primeiros têm direitos, os segundos são tolerados. E paciência se estou a ser demasiado simplista, mas tem sido isto.

E o extraordinário é que quarenta anos depois (40, santo Deus), também é isto.

Ainda é.

4. Rosadas, brancas, vermelhas, tantas camélias já abertas no nosso Oeste (e como agradecer este presente à chegada a casa?) Gostaria de as ter mandado à Marília (anteontem um telefonema brutal “a Marilia acaba de morrer”). Tão nossa amiga.

Nossa mesmo, daqui e do Campo Grande. Tantas conversas trocadas, risos, gostos, confidências, nem sei se segredos. De cada vez era como se nos tivéssemos visto na véspera e foi assim durante anos. Idas ao Brasil com a expectativa alegre de mais um encontro, um almoço, um teatro, uma novidade, uma conversa, um passeio, com a Marília e o Bruno. Vindas deles a Portugal com a certeza de que aqui em Lisboa seria o mesmo e era sempre.

Nesta tristeza imensa e solitária – mas a quem falar dela? – consola-me saber que o Brasil do tamanho de um continente, chorou a partida da sua maior actriz, Marília Pera.

Gostava de lá ter estado com as camélias.