1 No ano de 1994, fiz uma série de largas entrevistas para o Público sobre a memória de Abril de 74, vinte anos que eram passados. A lista era intencionalmente variada num balanço que se revelou feliz entre profissões e vocações, civis e militares, direita e esquerda. O desenrolar da memória de todos eles e o cruzamento de olhares sobre uma mesma realidade conferiu uma invulgar substância aos diálogos havidos, transformando-os em testemunhos preciosos e em certo sentido, alguns deles únicos. Vicente Jorge Silva então director do Público sugeriu-me que saíssem em livro (chamou-se “Do Fundo da Revolução” e foi editado pelo próprio Público). Embalada pela ideia, aprimorei o resultado, procurando de novo alguns dos meus interlocutores para prolongamento de conversa. Foi o caso por exemplo de Mário Soares que reencontrei em Nafarros, de Ernesto Melo Melo Antunes, que voltei a ver na sua casa de Sintra e de Carlos Fabião com quem me reencontrei em Lisboa.

Reli tudo isso. Ando há semanas de roda de livros, papeis, notas, fotos, por causa de um trabalho sobre os últimos cinquenta anos. Tenho visto e falado com gente que ou interveio directamente ou teve protagonismo político no país, desde Abril de 74 até ao fim do ano de 75 – são as datas que evoco por serem aquelas que comecei por rever. Experiência extraordinária: primeiro por ser inclassificável o confronto entre tudo o que vi e escrevi na altura – nunca desmentido – e o que se proclama hoje sobre esses meses de brasa; depois pelo próprio reviver do processo revolucionário.

Ter vivido o PREC dia a dia, passo a passo, confere-me a legitimidade do espanto: o que está em curso hoje sobre o que estava em curso ontem, é uma violenta falsificação da memória. Talvez mesmo a mais ousada e certamente a mais irracional com que me confrontei nestes últimos 50 anos.

2 Está-se perante vários desvarios (há desvarios mais honestos, apesar de tudo). Atribuir “à direita” – à quê? – a vontade de recordar Novembro, encafuando Novembro num exclusivo perímetro político e confundindo a direita com pelo menos 80% dos portugueses é um insustentável desvio da história como ela foi. Ou não era o país quase todo, com óbvio destaque para o PS, que estava atrás de Soares na Fonte luminosa?

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Certos sectores militares e a esquerda socialista e as outras apelidam hoje a data de “fracturante” não se sabendo que adjectivo usariam para definir a data mais fracturante destes últimos 50 anos, o próprio 25 de Abril de 74. Seria melhor ver o filme outra vez: os momentos em que tudo esteve por um fio, não deixaram sombras, nem marcaram ninguém?

3 Durou quase dois anos e aconteceu quase tudo o que não devia acontecer.

Recordo com memória vivida algumas cenas do filme do ano de 1975. Embora -e recorde-se isto – já a 28 de Setembro de 74 tivesse ficado legível no ar do tempo político a primeira impressão digital do PC sobre o curso das coisas. (E as coisas foram nesse dia uma “inventona” com base numa impreparada e inorgânica manifestação de apoiantes de Spínola e desapioaintes do resto.) O PC saltou como um abutre sobre o pretexto e tomou conta da ocorrência. Daí em diante e durante 11 longos meses, a velocidade e a vontade comunista só acelerariam.

(“No dia 28 Setembro de 74 eu estava em Nova Iorque, na ONU. Só me lembro que o Bernardino Gomes estava à minha espera no aeroporto de Lisboa a querer dar-me um pistolão enorme, imagine, para o que desse e viesse(…) Insistiu que me podiam matar, que eu não podia ir dormir a casa. Respondi-lhe que iria com certeza e fui.” Mário Soares, in “Do Fundo da Revolução”).

Apesar de Janeiro de 75 ter trazido a vitória “oficial” do PS contra o PC, na decisiva batalha pela unicidade sindical, o dia 11 de Março, oficializa a revolução: nacionaliza-se a bancas e as empresas e deita-se fora o Plano Económico e Social anti- colectivista feito em Sesimbra, no final de 74, por Melo Antunes e alguns economistas.

(“Eu assumira com clareza o facto de estar mais à esquerda que esse projecto – que era da minha responsabilidade – porque o achei uma solução adequada à situação portuguesa. No dia 11 de Março rasgou-se o papel”. Melo Antunes in “Do Fundo Revolução”, idem).

(“No 28 de Setembro os comunistas tomaram o pulso. No dia 11 de Março estavam preparados para avançar e avançaram. Lembro-me de que fui à sede do Partido Comunista falar com o dr. Álvaro Cunhal, logo no dia 12 ou 13, para lhe perguntar o que era aquilo… Ele estava muito eufórico e pela primeira vez disse-me que nós, socialistas, devíamos participar no processo, continuar com o PCP, ao lado do povo e do MFA. E acrescentou: ‘vocês têm aqui um lugar. Podemos caminhar juntos por muito tempo ainda. Mas se agora, nesta fase, se opõem ao processo revolucionário, serão implacavelmente eliminados.’ Isto no dia 12 ou 13 de Março de 1975! Fiquei esclarecido”. (…) Não, não saí horrorizado. Saí com a convicção clara de que travávamos um combate decisivo: ou ganhávamos ou eles nos liquidariam”. Mário Soares in “Do Fundo da Revolução”, idem)

4 Nas semanas seguintes institucionaliza-se o MFA; menorizam-se os partidos políticos subjugando-os ao poder militar através das criação de Pactos MFA/Partidos. O objectivo, crucial- quem não se lembra? – era impedir a todo o custo as eleições de Abril de 75, para a Constituinte. E no entanto, elas realizam-se – com uma gigantesca afluência ás urnas – o PS ganha-as e vai tomando posições. A custo, com divisões internas e muitas batalhas pela frente, Mário Soares irá tornar-se o líder civil da guerra em curso: a legitimidade democrática contra a legitimidade revolucionária.

As batalhas não se fizeram esperar: era imprescindível e por isso urgente, tornar irrelevante a vitória eleitoral socialista. Seis dias depois, Soares e alguns socialistas são impedidos – aos empurrões e pontapés – de entrar num estádio para festejar o 1º de Maio de 1975: os comunistas e alguns militares afectos não deixam, o líder do PS fora vetado.

(“O partido comunista quis demonstrar na rua que quem mandava era ele, que a força não estava na legitimidade eleitoral mas na legitimidade revolucionária”. Mário Soares, idem).

Maio trará ainda a ocupação de um bastião socialista, o jornal A República – o que levaria aliás e logo à saída do PS do IV governo provisório. A revolução portuguesa internacionaliza-se e impulsiona diversos apoios externos que começam a chegar.

(“Felizmente soubemos resistir com a ajuda preciosa de Willy Brandt, Callaghan, Olaf Palme, Mitterrand, e de Kreisky…” Mário Soares, idem )

5 Em Junho, coincidindo com o início dos trabalhos parlamentares para a Constituinte, surgem documentos militares revolucionários enquanto as ruas transbordam de manifestantes, clamando pela instauração do poder popular e a dissolução do novel parlamento; o MFA divulgara um “Plano” decretando que as eleições legislativas nunca poderiam ser um “obstáculo” na caminhada para o “socialismo “ enquanto o chefe do governo, Vasco Gonçalves, publicita o Documento-Guia da Aliança Povo MFA, visando a “instauração do poder popular”. Afinam-se estratégias politicas civis enquanto nos bastidores da revolução um sector militar se começa a mexer: era imperioso conter o PC, dividir o MFA, sobreviver à revolução. O PPD com Sá Carneiro ausente por doença faz o que pode, o CDS tem vida duríssima, mas nenhum desiste. Ninguém de resto queria desistir.

6 Lembro-me dos meus voos picados da Cova da Moura para a Região Militar de Lisboa, do Conselho da Revolução para São Bento, do Parlamento para os Comandos da Amadora, dos partidos para Belém, de Belém para as ruas, e destas para o jornal. Num segundo andar da Rua Duque de Palmela onde então morava o Expresso, era quase impossível dar vazão a tanta informação e tamanha contra-informação: os dias – e muito mais as noites que os dias – ferviam. Com aquele excesso de convivialidade que os genes nacionais nunca desistem de promover, víamos há meses desfilar políticos e militares, revolucionários e contra revolucionários, conselheiros da revolução, deputados, candidatos a ministros, ministros verdadeiros, conservadores e progressistas, políticos avulso, jornalistas estrangeiros. No “Verão Quente” quase se dormia na redação, era preciso estar de serviço ao que chamávamos heroicamente a revolução, enquanto a pátria ardia. Guardei estas memórias. Papéis, fotos, documentos, cartas: o espólio e o espelho do que foi. (Entre outros, o recorte da entrevista que em Julho de 74 fizera a Vasco Gonçalves, já chefe do II Governo Provisório, estava eu ainda na Capital, dirigida por Rudolfo Iriarte. O país mal o conhecia, era a sua primeira entrevista, mas eu descobri um louco que à despedida me invectivara: “diga lá o seu nome outra vez? Ah… bom mas agora vamos ter de acabar com esses apelidos sonantes…”).

7 Com alguns políticos a dormir fora de casa ou com as suas residências bem guardadas, as prisões com dezenas de detidos sem culpa formada – e lá metidos mediante um mandato de captura passado em branco – e o país a arder, Mário Soares continuava a desmultiplicar-se em contactos internacionais – falando, recebendo ou avistando-se com líderes políticos socialistas e sociais democratas, no governo ou na oposição, com diplomatas, com personalidades. Agia, conspirando: com militares e civis, com a Igreja – bispos, párocos, “freiras que lhe abriam a porta de conventos para que ele se encontrasse secretamente com eclesiásticos; com a direita e a esquerda socialista, com o povo. A incontável massa humana que com ele arrancara para a Fonte Luminosa, em Julho, desse verão quentíssimo, era a certeza maior da justeza do seu combate e a garantia do seu apoio popular.

(Questionado sobre se “para vencer o PC se aliara ao diabo, à extrema direita, ao MDLP, à Igreja , a tudo…” Soares respondeu-.me “ não me aliei coisíssima nenhuma. Limitei-me a aceitar que houvesse gente à direita que apoiasse o Partido socialista. Como o poderia evitar? Sempre pensei que o MDLP era um disparate medonho, nunca me aliei à extrema direita. A única força a que solicitei apoio foi à Igreja. Os outros só serviam para comprometer.” Mário Soares, idem)

O país acorria à chamada, a Europa também. Mas a indisciplina militar, a desordem vigente, a ausência de qualquer autoridade, a vertigem dos acontecimentos, já há muito percepcionadas nos sectores não revolucionários das Forças Armadas, tornara entretanto já óbvia a “necessidade” de um plano militar contra ofensivo. Com o conhecimento do Presidente da República, Costa Gomes, alguns coronéis e tenentes coronéis liderados por Eanes e quase todos por ele arregimentados, já algum tempo se haviam reunido. Eanes havia-lhes perguntado “ tu estás contente com ‘isto’?” Não estavam. Vasco Rocha Vieira, Tomé Pinto, Garcia dos Santos, José Pimentel, Loureiro dos Santos, entre alguns outros percorriam quarteis, conspiravam com comandantes militares, contavam espingardas. Organizavam-se militarmente. Mas como eles próprios me disseram há 49 anos e ouvi de novo este ano repetir a dois ou três deles, “é bom lembrar que o conceito operacional elaborado pelo nosso grupo militar colocou sempre como condição primeira o indispensável acordo do Presidente Costa Gomes para actuar. Daí ter-se obtido o seu acordo no tempo preciso. Caso contrário seria ‘um golpe militar’, que não desejávamos.”

Não foi preciso, mas podia ter sido. O país atordoado nada sabia deles mas eles souberam o que faziam.

8 Ao mesmo tempo que no terreno o grupo de coronéis moderados organizava na sombra a defesa militar do país, Agosto traz à luz do dia o histórico “Documento dos Nove”. Escrito por Melo Antunes e subscrito por mais 8 oficiais todos já sobejamente conhecidos, o Documento rompia com a ala comunista e extremista do MFA.

(“Fizemos o ‘Documento dos Nove’, redigi-o no meu gabinete das Necessidades em três ou quatro horas e em pouco tempo o texto transformou-se na Magna Carta dos Moderados”. Melo Antunes in “Do Fundo da Revolução”. )

Era a primeira grande fractura no seio do MFA. As coisas pareciam ter ficado mais claras mas nem por isso mais fáceis.

9 Numa longuíssima noite na redação do Expresso, no termo da qual era suposto Carlos Fabião aceitar o cargo de primeiro-ministro, substituindo Vasco Gonçalves – cujo discurso de Almada em Agosto de 75 anunciara oficialmente o comunismo no País – o Augusto Carvalho, então chefe de redação, intimara-me “a procurar saber do Fabião”:

“Tem de ir a casa do Vasco Lourenço, ele não atende o telefone.”

Eram perto das sete da manhã, a morada era “secreta”, algures nos arredores de Lisboa. Abrindo-me a porta, estremunhado e de pijama, ouvi-o dizer-me “o Fabião borregou”. A maratona militar dessa noite entre facções irreconciliáveis produzira um “borreganço” não previsto: nem nos planos dos “bons”, nem dos “maus”.

(Fiquei até hoje amiga de Vasco Lourenço, ele julgo que não. Guardo espantosas recordações de tudo o que vivi, algumas delas muito partilhadas com o próprio Vasco Lourenço e alguns dos Nove. Vasco Lourenço não suporta a direita. Não lhe dá direito de cidade no 25 de Abril , arruma-a – e mesmo assim – no 25 de Novembro. Tenho pena mas não revejo a história.

O que é ainda mais inverosímil é que de entre esses militares, hoje quase todos generais, que se reuniram a roda de Eanes para prover à defesa do país em caso de necessidade – e com quem falei recentemente – não houve um que não evocasse Vasco Lourenço. Nomeando-o no rol daqueles que estiveram onde deviam, assumindo responsabilidades ou comando.)

10 Com o outono a entrar e após muitos plenários, documentos e assembleias militares incendiariamente divididas, Vasco Gonçalves fora já substituído pelo Almirante Pinheiro de Azevedo na chefia do VI Governo Provisório. A temperatura era escaldante, a revolução produzira bons aliados: os “SUV” (“soldados unidos vencerão”); o “poder popular”, a “cintura industrial”, o Copcon, a FUR, as “manifs”, os “plenários”, a “vigilância revolucionária”.

Em Novembro, no auge da indisciplina militar e do descontrolo político, a guerra entre a extrema esquerda militar de Otelo e a ala comunista dos militares da V Divisão conduz ao cerco do Parlamento: não podia haver Constituição! A situação nunca fora tão grave. O líder do PS tinha diante de si o espectro do país dividido em dois: a sul, a revolução; a norte, a contra revolução: “as mocas de “Rio Maior”; o Cónego Melo, as homilias em dezenas e dezenas de igrejas, os incêndios em sedes do PC, o MDLP de Spínola — há muito já exilado no Brasil mas com algumas “tropas” no país e uma “resistência” popular que crescia a cada dia. Soares aconselha Sá Carneiro – já restabelecido e regressado à liderança do seu partido – e Diogo Freitas do Amaral a seguirem-no numa mudança para o Porto. Mesmo que não organicamente os três estavam concertados, os três temiam a comuna de Lisboa.

“O ouro já foi” lembro-me de ter ouvido eu, nessa exacta altura, a um alto responsável do Banco de Portugal. Os líderes do PPD e do CDS seguiram o líder do PS. Fizeram bem. Também sabiam o que faziam.

(“Fui de facto para o Porto com o Manuel Alegre, o Cardia, o Campinos e outros. Apresentei-me no Quartel General onde estava no comando o Brigadeiro Pires Veloso que dominava o norte nessa altura. Estava também o General Lemos Ferreira que levou com ele toda aviação para Cortegaça. O esquema- no caso provável da capital ser dominada pela Comuna de Lisboa- era dividir o país em dois…Na preparação dessa operação , na expectativa do que seria o 25 de Novembro, os meus contactos foram sempre com o Grupo dos Nove”. Mário Soares, idem. )

11 O passado foram essas madrugadas infindas, esperando o fim de tumultuosos Conselhos da Revolução, inquietas e inquietantes assembleias do MFA, ansiosos telefonemas de vigiadíssimos telefones fixos. Novelo intricado de desfecho incerto.

Ou ganharia a democracia de Soares (e de Sá Carneiro e de Freitas do Amaral) ou venceria o comunismo de Álvaro Cunhal.

(“Os governos de Vasco Gonçalves foram o terreno de luta entre moderados e radicais, ligados quer ao PC, quer à extrema esquerda. Toda a história do poder político em Portugal desde o II governo provisório até ao ‘verão quente’ foi a história dessa confrontação.” Melo Antunes, idem)

12 Em cima da vigésima quinta hora, o PC desiste. A certeza da derrota empurra-o para fora de cena, sai pela esquerda baixa. Percebeu que nem a força, nem o poder, nem o povo, nem o país estavam com ele: a confrontação pendeu para o outro lado, a revolução desaguou na democratização idealizada e prometida em 25 de Abril de 1974.

O 25 de Novembro foi feito por civis e militares e assinado por quase todos, Portugal agradeceu a uns e outros. (Lembrem-se os Comandos hoje tão pouco lembrados* na actual cultura democrática do país, mas do mesmíssimo modo que não esqueço o insubstituível contributo dos partidos democráticos, do “Grupo dos Nove” ou dos coronéis e tenentes-coronéis de Eanes, recordo hoje o brio militar e a capacidade de liderança de Jaime Neves, com quem muito também convivi.)

(“O 25 de novembro, como contra golpe foi preparado e executado conspirativamente com o Grupo dos Nove – sobretudo o Vasco Lourenço que teve um papel decisivo e com gente do norte, Pires Veloso e ainda com Lemos Ferreira na aviação. Outros deram um contributo importante mas nunca contactei com eles: Eanes, Garcia dos Santos, Firmino Miguel, Tomé Pinto, Almendra e todo um grupo de militares vindo de Angola, após a independência. Estas figuras reuniam-se e conspiravam. Nós socialistas estávamos ao corrente e tínhamos as nossas ligações com os ingleses, nomeadamente. Sabíamos que estava iminente um golpe, que a extrema esquerda estava muito impaciente e que seria decisiva para o partido comunista. Preparámo-nos então para sermos nós a fazer o que eles tinham feito no 11 Março, ou seja a ensaiar o contra golpe do nosso lado. O que sucedeu. Foi aí que o general Costa Gomes tornou a ter um papel importante porque impediu talvez a guerra civil. (…) O PC serviu- se da extrema esquerda como ponta de lança mas depois foi vitima da sua impreparação e do seu espontaneísmo. Quando à noite os Comandos atacam a policia militar é outra vez o Costa Gomes que de madrugada consegue convencer o partido comunista a desistir”. Mário Soares, idem)

Novembro resgatou Abril. Ganhou a democracia, mesmo que por muito tempo ainda ficasse coxa e hoje seja desigual. E eu ganhei alguns amigos militares e civis “herdados” da irrepetível cumplicidade gerada na vertigem de emergências non stop e em dias sem lei nem norte.

13 Que os comunistas mintam, sempre mentiram, calando ou deitando fora quem se lhes opõe”; que a extrema esquerda invente hoje uma narrativa para apanhar esse combóio, poucos farão caso. Mas que alguns militares e o PS queiram diluir hoje o papel do líder socialista numa memória traiçoeira e mal revista, é uma imensa injustiça para Mário Soares e o que ele fez, liderou, representou. E que os socialistas ou grande parte deles usem do ardil de fazer de conta que tudo não foi como foi, é uma vergonha: a assinatura que põem hoje no passado não coincide com a de ontem, é falsa. E no fundo é tão simples: não teria havido o primeiro 25, sem o segundo. Novembro resgatou Abril, sim. E solidificou o PS -o então PS – escorando-o nas fronteiras da sua própria geografia política.

14 Lembro-me de tudo, sim. Até de explicar aos meus filhos (há 20, há 30 há 40 anos) que o que acima vivi não foi grotesco nem burlesco como inevitavelmente lhes pareceria, mas o caminho talhado a custo por entre enganos imperdoáveis, erros fatais e custos nunca avaliados. Doeu, custou, assustou. Foi forte, tenso e intenso, inesquecível.

Hoje? Para cada um o seu balanço e a escolha de um saldo já com meio século. Mas não é pouco vivermos num Estado de direito, morarmos numa liberdade de chão sólido, assente na livre escolha das suas regras e princípios. E se hoje vivemos uma maré politica baixíssima, com assomos de vigilância no pensamento, perturbadoramente coberta das piores sombras e toldada pela dúvida e a suspeita, Portugal não só isso. Nem – ainda menos – se resume aos diversos “eles” que o têm liderado .

O país somos nós.

PS: Quase ninguém já se lembrava deles, Carlos Moedas lembrou-se. Lá estavam há dias, na Câmara  Municipal, iguais a eles próprios, disciplinados e reservados. (A tentativa de cancelamento em curso logo ditou insultos e invectivas, quem lá quis ir julgo que não se importou nem, se espantou.) O que interessa e fica, o que tinha de ser lembrado no mesmo “pé” de outras datas e efemérides que nos são caras, foi a insubstituível colaboração militar de um grupo de homens – muitos deles ali presentes, para além da delegação dos Comandos. Militares que em articulação com o então Chefe de Estado, General Costa Gomes e concertados com autoridades políticas civis redimiram o 25 Abril de um desvio perigoso da estrada e o recolocaram na via principal de um Estado de direito. Foi vivido, está escrito, gravado, documentado e filmado. Não é pouco, mas merecia lembrança. Foi o que fizeram Vasco Rocha Vieira e Carlos Moedas. Lembraram ao país o que estava em atraso de lembranças.