1 Há dias estive num debate na Biblioteca Municipal Verney, em Oeiras, por ela promovido – e também difundido online – a debater o 25 de Novembro. “Os ânimos estão exaltados” afirmava sorrindo alguém da casa, ao olhar o écran do computador, antes do inicio da sessão.

Na sala não se exaltaram, pelo contrário, foi uma interessante, fundamentada, fluida, conversa; no país, sim, há ânimos exaltadíssimos. Legitimando essa exaltação com falsidades históricas – tão longe da realidade que a própria História terá muita dificuldade em contemplá-las. Quem havia de dizer que quase cinquenta anos depois, num salto (mortal?) enviesadíssimo e pouco sério, as esquerdas se iriam apoderar politicamente de Abril de 74, para lhe capturar o exclusivo da data e da glória? Evoco toda a esquerda, naturalmente, com o PS de António Costa a caucionar hoje o inimaginável apagamento do próprio fundador da democracia portuguesa (e do PS…): exit Mário Soares. Como é possível? Não fora ele e toda de gente que se lhe juntou nesse tal 25 de Novembro hoje tão exaltadamente proscrito e não havia 25 de Abril, entendido no seu propósito inicial. (De resto também não há Spínola, como se o seu livro “Portugal e o Futuro” não tivesse tido uma importância fulcral no próprio 25 de Abril!).

A caminhada até Novembro – a bem dizer até 24 de Novembro – assustou, demorou, doeu, custou. Mas, sem essas estações, nunca teria havido o parto da Democracia, nem o selo de autenticidade desse “valeu a pena”, que agora esvoaça por aí… ao contrário: foi cancelado. Com um pretexto batoteiro: a transformação da data de 25 de Novembro de 75 num combate da direita contra a esquerda, (ah Dr. Soares olhe que sim, eles saibam o que fazem).

2 Inventou-se assim virulentamente outra história. Mas não há outra história. Há a que houve. Estive lá, vi tudo, testemunhei, anotei, escrevi. Não esqueci nada: o que vivi foi o longo, sobressaltado e duríssimo combate do país liderado pelo PS com Mário Soares à frente, contra uma alucinante e alucinada minoria de divididos revolucionários, comunistas e extremistas. Desordenadamente ocupados em desviar o curso das águas postas a correr em Abril em 74, como se desvia o curso de um rio. De um lado a legitimidade democrática já certificada pelo voto por milhões de portugueses. Lembremos a propósito: mais de noventa por cento dos portugueses tinham livremente escolhido ir às urnas nesse Abril de 75. Cifra absolutamente extraordinária e obviamente irrepetível com a qual milhões de votantes julgavam ter trancado de vez as portas da revolução. Minuto a minuto porém ela subia de tom e de grau: nacionalizações, prisões sem culpa formada de centenas de pessoas; o parlamento cercado; um governo em greve; os “SUV” (“soldados unidos venceremos”) à solta, o “poder popular”, as betoneiras da “cintura industrial”; o Copcon, a FUR, as “manifs”, “as armas em boas mãos”, os “plenários”, a “vigilância revolucionária”, a ameaça da “comuna de Lisboa”, a guerra de ameaçadores comunicados&documentos assinados ora por militares comunistas, ora da extrema-esquerda. E last but not least, Soares a chamar Sá Carneiro e Freitas do Amaral para o acompanharem com armas e bagagens partidárias numa operação política de “mudança” para o Porto. Onde por sinal havia um indivíduo militar chamado Corvacho que num quartel que lhe estava confiado, se entretinha com execuções sumárias “a brincar”. (Nesse mesmo Porto onde há dias o seu presidente da Câmara, Rui Moreira, fez uma intervenção na “Festa da Liberdade”. Porventura menos como autarca da cidade e mais como filho que viu o seu pai ser preso sem culpa formada e mantido incomunicável por longos dias de arbítrio revolucionário. Coisas que não suportam a conveniência da revisão histórica em curso.)

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3 Chamar hoje a isto um combate da direita contra a esquerda é uma manipulação indecente, um insulto aos portugueses, uma traição à memória. E claro, uma extraordinária menorização do papel de Mário Soares nesta caminhada (como irão sair dessa?).

Soares não estava sozinho. Nem poderia. Há muito que a linha “justa” do MFA liderada por Melo Antunes e conhecida pelo Grupo dos Nove, vinha amparando e legitimando as “tropas” civis do então líder do PS. O exercício foi laborioso (o general Tomé Pinto recordou-o com a viçosa memória dos seus oitenta e seis anos, no final do debate de Oeiras): havia que tecer a unidade e lograr a total sintonia das cúpulas militares moderadas com as chefias partidárias: nenhuma delas faria nada sem a outra. Foi assim que após ter conspirado com ingleses, americanos, alemães; diplomatas, eclesiásticos de vários graus, socialistas, social-democratas, centristas e povo em geral, Soares arrancou para a Fonte Luminosa, com Portugal atrás. Não era qualquer um que o faria. O país pôs-se em sentido atrás dele. Era imprescindível responder àquela chamada.

O cancelamento do 25 de Novembro não é de hoje – não consta por exemplo dos manuais de história que se ensinam na escola pública. Foi semeado, depois vibrantemente adubado e agora é oficial. Tornou-se oficial: “É uma data fracturante”, disse há meses Pedro Adão e Silva, ainda só cidadão multicomentador, quando então se iniciava no exercício das comemorações do cinquentenário de Abril de 74. Depois foi de supetão ocupar-se “da” Cultura – mas a frase ficou desfraldada ao vento do tempo: o 25 de Novembro foi “fracturante”. (Ah bom? E o 25 de Abril? Haverá data, dias, horas, mais fracturantes? )

E assim estamos. O 25 de Novembro não passará: é reacionário. Oportunisticamente manipulada a data, em vez de nacional, é reacionária. Eles que me venham dizer isso a mim.

4 Ah, Dr. Soares, não lhes perdoe porque eles sabem o que fazem.