“A história da minha ida à guerra de 1908”. Duvido que seja mais conhecida em Espanha, país onde foi originalmente criada pelo comediante Miguel Gila, do que em Portugal, na versão de Raul Solnado. É difícil imaginar aquela rábula sobre um jovem que vai todo aprumado para a guerra para não encher a guerra de moscas e que chega lá ainda a guerra estava fechada, ter qualquer espécie de impacto nuns Estados Unidos, numa Alemanha, em qualquer país que se meta em guerra a sério. Mas, entre nós, o tiro dificilmente poderia ser mais certeiro: fazia-nos ver ao espelho. O tipo que levava a bala presa com uma guita para não a perder éramos nós chapados, o soldado sem jeito nem meios, pachola, que lá vai escapando de males maiores por graça dos deuses para com os pobres de espírito.

Duvido que tenha sido o único a lembrar-se disto quando, esta semana, Volodymyr Zelensky, Presidente da Ucrânia, visitou Portugal por seis breves horas. À alegria e ao orgulho por ver entre nós aquele que é o líder de facto da resistência do mundo livre na guerra que marca o nosso tempo, sobrepunha-se o desconforto da pergunta: que teríamos nós para oferecer a este homem? A este povo? A esta luta? Uma bala com uma guita? Ou as palavrinhas de circunstância do costume?

Aos primeiros instantes, já se temia o pior: Marcelo agarrado ao braço de Zelensky como quem puxa o netinho para lhe dizer que tem ali 20 euros para lhe dar, mas para não dizer nada à avó. Receámos pelos seus conselhos de guerra, ou por uma eventual apreciação acerca das características do povo ucraniano. De repente, ali estava um antigo comediante, como Gila, como Solnado. Um artista de variedades que se tornou Presidente ao lado de um Presidente que, tantas vezes, se confunde com um artista de variedades. Felizmente, a agenda obrigava a ir rapidamente para São Bento e, quando os dois chefes de Estado se voltassem a encontrar, ao jantar, tudo se passaria à porta fechada.

Somadas as coisas, o balanço foi positivo, que é como quem diz, o ministro da Defesa não cometeu nenhuma gaffe (até porque, que tivéssemos dado por isso, nem abriu a boca). Portugal e Ucrânia assinaram um “Acordo sobre Cooperação de Segurança”, cheio de intenções genéricas, mas exactamente como Espanha, Bélgica ou Alemanha já tinham feito. Com uma diferença: Espanha ia contribuir com a ajuda de uns nada genéricos mil milhões de euros, França com uns ainda mais concretos 3 mil milhões de euros e a Alemanha com uns fabulosamente palpáveis 7 mil milhões de euros. Portugal juntou 126 milhões. É pouco, mas de boa vontade, dirá o povo. Quem dá o que tem, a mais não é obrigado, continua a sabedoria popular. E como contrariá-la? Zelensky agradeceu ao “amigo sincero” Portugal e disse que, um dia, retribuiria a ajuda. E nós, confortados pelas palavras daquele a quem deveríamos confortar, só pensávamos que há já mais de dois anos que ele anda a “retribuir”.

O embaraço não será, portanto, o tamanho do donativo financeiro. É saber que este mesmo país que gosta de bater com a mão no peito e lembrar que é membro fundador da NATO, foge com o rabo à seringa quando ouve o Chefe de Estado-Maior da Armada dizer o óbvio: que temos de estar preparados para morrer para defender a Europa caso esta seja invadida. É ver o que disseram a propósito os cabeças-de-lista às Europeias de AD, PS, Chega e CDU quando questionados sobre o assunto. Como se ignorassem os tratados, achassem que não são para levar a sério, ou que, na guerra, as balas estão mesmo presas por uma guita salva-vidas.

Talvez seja parte do nosso encanto, há muitos séculos, não ser especialmente dados à guerra; acreditar que tudo se resolve com dois dedos de conversa. Lamentavelmente, isso não é verdade. A passagem de Zelensky por Portugal foi um salpico de realidade num país onde, tantas vezes, tudo o que se faz é fazer de conta. Que triste seria se não aproveitássemos a sua resistência para mudar qualquer coisa quanto a isso.

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