“Isto é doloroso de ver. Tem de ser doloroso de ver”, diz, a dado passo, a locução monocórdica, como se não fosse moralmente tolerável acrescentar mais emoção à que a câmara mostra, de Mstyslav Chernov. E é doloroso. 20 Dias em Mariupol é isso: dor. Não há qualquer espécie de artifício técnico ou narrativo, recurso de estilo, trabalho dessa mão a que nos habituámos a chamar do artista: carpintaria, pintura, poesia – nada. Não há uma ideia, um ângulo, uma personagem, uma premissa, um subtexto. Não tem de haver. Não podia ver. É dor, apenas a dor, dor pura. Tudo o mais terá de ser destilado a partir dela: a coragem daqueles jornalistas que ali ficaram para testemunhar a história quando todos os outros já tinham partido, o sentimento de ultraje, de indignidade, de injustiça, de perplexidade, a raiva.

É isto: um filme que é uma caixa de dor; a montante, uma equipa técnica com muita coragem; a jusante, espectadores com muita raiva. É ridículo dar-lhe estrelas. 20 Dias em Mariupol não quer a nossa opinião; só quer que vejamos. Quase não é cinema, mas é cinema porque obriga o cinema a aceitá-lo. “Não posso mudar a história, o passado”, dizia Chernov há poucas semanas, quando subiu ao palco do Dolby Theatre para receber o Óscar de Melhor Documentário. “Mas todos juntos – estão aqui algumas das pessoas mais talentosas do mundo – podemos garantir que a verdade prevalecerá. E que as pessoas de Mariupol nunca serão esquecidas. O cinema forma memórias, e as memórias formam a História.”

Mas então, aceitando que temos de o decompor como objeto fílmico, o que é 20 Dias em Mariupol? É o condensado de todas as imagens captadas pelos repórteres da Associated Press, os últimos que ficaram na cidade, do primeiro dia da invasão russa ao vigésimo, quando até eles tiveram de partir. As imagens que foram enviando para o mundo, quando conseguiam carregar os telemóveis ou ter internet, e que os serviços noticiosos de países livres usaram para mostrar ao mundo o que se estava, realmente, a passar debaixo da suposta “operação militar especial” de Putin.

[o trailer de “20 Dias em Mariupol”:]

O espectador vai reconhecer muitas delas, como as da maternidade destruída, donde mulheres grávidas feridas por estilhaços de bombas fugiam a pé e de maca e que Sergey Lavrov disse serem “atores”. As imagens dos primeiros tanques com o arrepiante “Z” a entrarem na cidade e a virarem os canhões para os edifícios públicos, do desespero dos civis com as casas destruídas, dos corpos pelo chão, de crianças a morrer nos braços de médicos em lágrimas, dos funcionários da câmara a cavarem valas comuns, do senhor que caminha rua fora, debaixo de um bombardeamento porque “o que é que se há-de fazer? Eles vão continuar a disparar e eu vou continuar a andar”.

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20 Dias em Mariupol é também o registo de como morre uma cidade e, talvez, a própria civilização. Do primeiro dia, em que perante o anúncio de Putin, os jornalistas se deslocam pelas estradas de uma sociedade ainda perfeitamente estruturada, rumo a Mariupol onde já imaginam que a guerra possa começar, ao vigésimo, nem, portanto, três semanas depois, em que tudo o que resta são carcaças de edifícios carbonizados. “Uma das coisas mais estranhas da guerra é que não começa com uma explosão”, dizem-nos, logo no início, “mas com um silêncio”. E, de repente, no curto espaço de dias, já são os próprios vizinhos que pilham uns aos outros, entrando pelas montras partidas ou partindo eles mesmo as que resistiram às bombas russas, empurrados pela fome, pelo terror ou sabe-se lá mais pelo quê.

É claro que, neste momento, está alguém desse lado a dizer: “Então, e Gaza?” O moralista, espertalhão, que acha que uma atrocidade nos tira o direito a chorar com outra. A esse, quem quiser que o salve. A Mariupol já não vamos a tempo.

Dissemos lá acima que o espectador sentia raiva? Também sente medo. Muito medo. Lamentamos por aqueles a quem demasiadas certezas possam ter tornado incapazes de dizer o mesmo. Como deixa cair, a determinado momento, o embaixador russo na ONU: “Quem ganhar a guerra da informação, ganha a guerra.” Simples. Lamentamos as vítimas da guerra. E, às vezes, ainda mais as da informação.