“A Soberania é a Alma da Comunidade Política; quando ela abandona o Corpo, os membros deixam de receber dela o seu movimento”; transformam-se, na ausência dessa “Alma Artificial”, na “Carcaça de um Homem”. Estas palavras do filósofo inglês Thomas Hobbes, escritas em 1651, vêm facilmente ao espírito em tempos de crise, porque são sem dúvida as mais emblemáticas de um tema central da filosofia política que ocupou o espírito humano de Platão a John Rawls, o das condições de desagregação da comunidade política.

Se pensarmos na nossa situação actual, esta aproximação a Hobbes é obviamente um exagero, algo que serei o primeiro a reconhecer. A sociedade portuguesa não é exactamente uma carcaça inerme e incapaz de uma agitação qualquer. Vai-se mexendo e circulando, com energia ou sem ela, mesmo que desligada da sua alma, para falar como Hobbes. Mas a comparação não é inteiramente despropositada. A sociedade pouco já tem a ver com qualquer princípio de organização representado pelo Estado. O Estado, preocupando-se unicamente com a satisfação dos interesses de algumas clientelas próprias, várias delas ditadas por alianças que o Governo teve de estabelecer para se afirmar como poder, deixou, pouco a pouco, de representar a sociedade. A bem dizer: quase deixou de ser Estado. O resto, a sociedade propriamente dita, assemelha-se mesmo uma carcaça.

Continuando com Hobbes. Há, de acordo com a sua teoria do contrato social, uma passagem de um estado de guerra de todos contra todos, onde reina a insegurança e o medo da morte violenta, a um estado civil onde todo o direito de se usar do poder próprio para preservar a sua vida é transferido para a comunidade política, o Estado, representada pelo soberano, que tanto pode ser uma monarquia como uma república ou uma aristocracia. A única coisa verdadeiramente decisiva é que o soberano, o representante, nos garanta a segurança que nos faltava no estado de natureza. A preservação da segurança individual e colectiva é a única razão de ser do Estado. A teoria do contrato social, do pacto, é obviamente uma ficção (elas abundam em filosofia), mas é uma ficção destinada a ajudar-nos a pensar mais claramente a nossa existência política real. E se é verdade que há na tradição filosófica autores, como Aristóteles, que nos falam da experiência política de um modo mais rico do que Hobbes, também o é que há algo em Hobbes que só pode ser verdadeiro. Ou melhor: que nos oferece a mais razoável imagem das condições elementares de vivermos juntos.

Acontece que o soberano pode falhar na sua essencial missão, aquela que ditou a transferência colectiva dos nossos poderes para a sua pessoa: a garantia da nossa segurança. Nesses casos, que Hobbes analisa em detalhe, verifica-se algo como um retorno ao estado de natureza. Quer dizer: os indivíduos, para preservarem a sua vida, ganham de novo o direito a usarem de todos os poderes próprios para se defenderem uns dos outros. Uma das muitas grandezas de Hobbes consiste em ele ter sentido como ninguém antes ou depois a que ponto essa ameaça, a ameaça de um retorno ao estado de natureza como consequência do enfraquecimento do soberano, se encontra sempre presente na nossa vida política.

Hobbes tinha naturalmente diante de si o exemplo da Grande Revolução e da guerra civil em Inglaterra. Mas não é necessário recorrermos a exemplos tão extremos nem pensarmos o retorno ao estado de natureza da forma plena e total como Hobbes o pensou. Há retornos ao estado de natureza por assim dizer mais limitados e imperceptíveis. Quando o Leviatã, o “Homem Artificial” (a comunidade política, o Estado) criado para a protecção do “Homem Natural”, se começa a desagregar, as consequências não têm de ser uma explícita guerra de todos contra todos em que cada ser humano é um lobo para o outro. Há modos mais pacatos de tal retorno. O desrespeito pela lei, que passa a ser sentida como carecendo de justificação, já que não nos protege, é sem dúvida um deles. E poder-se-ia continuar com vários exemplos, num contínuo que vai do mais público, do mais político, ao mais privado.

Ou muito me engano ou vamos mesmo por este caminho. O soberano anda visivelmente distraído de nós e da nossa protecção. E a comunidade política apresenta todas as características de uma carcaça prematura. Hobbes dava como imagem do ficcional estado de natureza a relação efectiva entre os vários Estados, todos eles com canhões apontados uns aos outros. A desagregação do estado civil, do “Homem Artificial” que é a comunidade política, traria esse modelo da política externa para o interior da sociedade. Confesso que já andei mais longe de achar isso impossível entre nós. Ligando a televisão e vendo vários ministros que obviamente não sabem o que fazer nem têm qualquer concepção dos seus deveres ou das exigências que o exercício do poder lhes impõe, nem do que podem fazer pela nossa segurança, ou então um senhor omnipresente e conspicuamente frágil e irresponsável que só parece saber falar de afectos, a possibilidade da carcaça salta aos olhos.

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