É hoje que o governo de Barcelona, segundo um aparente plano secreto, pode declarar a independência. E não, não será apenas um desafio a Madrid. Será, acima de tudo, uma provocação à outra metade da Catalunha que, como se viu na manifestação unionista de domingo, não se reconhece no separatismo, nem no tipo de catalanismo que os separatistas têm fomentado e manipulado. Calcula-se que 40% dos cidadãos na Catalunha seja, em primeira ou segunda geração, originária de outras regiões de Espanha. Haverá ainda 1,2 milhões de imigrantes de outros países (17% da população). Todos eles têm o espanhol como primeira ou principal língua de comunicação e, como tal, são já vítimas da discriminação linguística do governo de Barcelona. Naturalmente, desconfiam de que nunca serão mais do que gente de segunda classe num eventual Estado definido pelos critérios étnico-linguísticos dos separatistas.

Eis uma das razões por que a maior parte das comparações que por cá se têm arranjado para o caso catalão não fazem sentido. Não, a Catalunha dos separatistas não é nem nunca será Portugal. Portugal, ao contrário da Catalunha, é há quase 900 anos um Estado independente, com excepção de um breve período de 60 anos de mera união dinástica: não tem uma vida e uma história comuns com Espanha, nem uma grande parte da sua população é originária do resto de Espanha e fala espanhol. E já que falamos de comparações, a Catalunha também não é Timor-Leste. Timor sob ocupação indonésia não estava, ao contrário da Catalunha, integrada num Estado de direito democrático, mas numa das mais sangrentas ditaduras do mundo.

Mas os catalães não têm direito a fundar um Estado independente? Mas a Espanha não os está a impedir? A questão aqui está em definir o que são os catalães, o que é a Espanha, e como é que se exercem direitos. Na Catalunha, não são só os separatistas que têm direito a decidir. São todos os cidadãos que vivem na Comunidade Autónoma. A Espanha, no sentido do governo de Madrid, não é, em relação à Catalunha, uma entidade externa: é o governo que os cidadãos da Catalunha, tal como os de outras partes de Espanha, elegeram livremente. Como tal, o governo de Madrid tem obrigações para com esses cidadãos, nomeadamente a de garantir que decisões sobre o futuro do Estado devem ser tomadas por todos os cidadãos e de acordo com a Constituição e as leis, e não impostas à maioria por uma minoria de golpistas, através da ilegalidade e do confronto.

Uma República Catalã não seria outro pacato Portugal na Península Ibérica. A Catalunha nunca teve fronteiras históricas definidas como Portugal. Fez sempre parte de outros Estados. Por isso, os separatistas da Catalunha, tal como aliás os do País Basco, não reconhecem os limites da região autónoma como fronteiras da sua República independente. Preferem reivindicar os territórios dos Estados em que a Catalunha esteve integrada, como a antiga Coroa de Aragão, e que incluem outras regiões de Espanha, como a Comunidade Valenciana e as Ilhas Baleares, e até de França, como o departamento dos Pirenéus Orientais. Em Valência, a propaganda e a agitação do “pancatalanismo” já são veementes. Dir-me-ão: eles não irão por esse caminho. Não? Muita gente também acreditou que eles nunca chegariam à separação.

Os separatistas já dividiram a população da Catalunha e fizeram fugir empresas e poupanças. Uma República Catalã dominada pelo esquerdismo revolucionário, com reivindicações territoriais sobre os Estados vizinhos e abarcando milhões de espanhóis contrariados e discriminados, nunca seria um Estado estável nem uma democracia. Significaria a balcanização da Península Ibérica, não apenas no sentido da multiplicação de Estados, mas no da irrupção dos intratáveis conflitos fronteiriços e étnicos que tornaram notórios os Balcãs. Esta pode ser mesmo uma das grandes tragédias do nosso tempo, e desta vez não será para os portugueses, ao contrário do que estão habituados, uma crise longínqua.

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