O PS, como se sabe, teve a muito generosa ideia de divertir os portugueses através dos célebres cartazes que colocou aqui e ali. Primeiro, o da menina que magicamente fazia surgir uma paisagem de luz parecida com a da criação do universo, retirando de sobre ela, com a facilidade de quem executa um desígnio altíssimo, uma folha pesadamente carregada de nuvens negras. Toda a gente, é claro, gozou com a religiosidade de fancaria da coisa.
Vendo o erro, o PS retirou o cartaz, e, como se de um processo dialéctico se tratasse, optou pela negação do surto místico fusional e concentrou-se no oposto, isto é, nos indivíduos. Mas também aí as coisas não correram bem. Num dos cartazes, uma senhora queixava-se de ter ficado desempregada no tempo de Sócrates. E, detalhe mais grave, a senhora que aparecia noutro cartaz afirmou ao Observador que tinha consentido ser fotografada, mas não que lhe atribuíssem afirmações que, de resto, não correspondiam à sua situação actual, admitindo processar o PS. A senhora e um outro senhor que aparecia num dos cartazes desta nova leva trabalhavam na Junta socialista de Arroios, de que é presidente Margarida Martins, que logo fez questão de dizer que tinha agido como mera intermediária e que a responsabilidade era do PS. O PS voltou a tirar os cartazes. Falhando a tese e a antítese, isto é, o cosmos e o indivíduo, o PS avançou mesmo assim para a síntese. Um novo cartaz apareceu, com o rosto solar de António Costa acompanhado da expressão: “É tempo de confiança”.
Desta história, a lição tirada pela maioria das pessoas, creio, é a da terrível incompetência do PS. Uma incompetência que fez com que Ascenso Simões, que, diga-se de passagem, ainda há não tanto tempo assim exigia a Cavaco que condecorasse Sócrates, saísse da direcção da campanha. Mas de incompetências está o mundo cheio, e, além disso, são só cartazes, que aparentemente significam pouca coisa e não nos dizem muito sobre a justeza das pretensões do PS a pastorear os portugueses. Apesar de tudo, pode muito bem acontecer que António Costa tenha razão e que seja “tempo de confiança” – nele.
Eu, por acaso, tenho umas valentes dúvidas no capítulo. E elas têm alguma coisa, de resto, a ver com o primeiro cartaz, o tal que retrata a criação do universo pelo PS. Admito que o estilo do cartaz possa até ter parecido vagamente incómodo aos olhos de muitos socialistas. Mas algo me diz que a mensagem, o conteúdo, coincide em boa parte com o que vai nas cabeças deles. Edson Athayde não errou no essencial. Há ali aquela ideia de que tudo vai começar de novo, graças ao puro desejo de transformação, e que basta tirar do poder Passos Coelho para que se faça luz e tudo mude para melhor, para muito melhor. Até porque os nossos padecimentos resultam na sua vasta maioria dos seus maléficos propósitos e das suas acções coerentemente perversas. Começar tudo de novo, movidos por uma enorme esperança, é o que é preciso. E a palavra “esperança” é aqui a palavra-chave. Aquele sublime céu que se descobre por detrás da plúmbea massa arrancada de mão leve pelo anjo do PS quer dizer essa esperança sem limites.
O problema – um problema do qual verosimilmente os socialistas não se dão conta – é que essa esperança desmesurada entra em contradição com a confiança que António Costa pede no último cartaz. O espectáculo da esperança imoderada não suscita em gente adulta uma confiança por aí além. Mais: suscita até alguma desconfiança, porque parece algo infantil. Se se quer suscitar confiança não convém abusar da esperança que um puro gesto tudo mude. A esperança excessiva tende a descurar, quase por princípio, os detalhes que é preciso ter em conta para que bons resultados se obtenham. Um apropriado exemplo simbólico desses descuidos são, de resto, os segundos cartazes, aqueles nos quais indevidamente se atribuíam a pessoas reais propósitos que elas não haviam nunca emitido e que colocaram quem se viu metido nessa alhada numa situação no mínimo desagradável. Quer dizer, não faz mal repetir, que o abuso da esperança destrói a confiança.
Um sociólogo que vale a pena ler, apesar de utilizar muitas vezes uma linguagem a tender para o rebarbativo, é Niklas Luhmann. Ora, Luhmann consagrou precisamente um dos seus primeiros livros ao tema da confiança. Nele faz notar que, enquanto a confiança reflecte à sua maneira a contingência, ao mesmo tempo que representa um mecanismo social visando a redução desta (não a sua eliminação, obviamente impossível), a esperança ignora, pela sua própria natureza, a contingência. Ora, o que é fundamental para um relativo bom funcionamento da vida em sociedade é a confiança. É fundamental porque, como procura explicar Luhmann, a confiança é uma forma de reduzir a complexidade inerente à sociedade, e essa redução da complexidade permite-nos, por assim dizer, antecipar o futuro e, por conseguinte, permite-nos igualmente agir.
Claro que tudo isto é precário, a confiança possui uma natureza precária. Além disso, repousa, à sua maneira, sobre uma ilusão, mas uma ilusão necessária, porque não temos informação suficiente para agir com sucesso garantido. Precisamos de confiar. A confiança é a informação extrapolada. Extrapolamos do pouco que sabemos algo mais geral. Confiamos que é assim que as coisas se passarão, e agimos em função disso. A disposição à confiança supõe a aceitação de um grau de incerteza suportável. Isto que Luhmann diz parece-me inteiramente certo, e, além disso, perfeitamente experienciável no curso das nossas vidas, tanto nas relações pessoais quanto no modo como, mais latamente, funcionamos em sociedade. A confiança procede ao arrepio das exigências extremas da esperança, que eclipsam, contrariamente a ela, a consciência da contingência e do risco. A energia utópica da esperança, cega à contingência e ao risco, destrói a precária estabilidade necessária para a acção.
Somando tudo, é bem possível que os cartazes nos digam, para além do anedótico, algo de substantivo sobre o PS. Até na sua curiosa sucessão. A saber: que o PS se vê a si mesmo como portador de uma esperança a roçar o incondicional; que essa esperança, dado o seu carácter quase absoluto, traz fatalmente consigo uma desatenção aos detalhes da realidade empírica; e finalmente que, por isso mesmo, ela tende a inspirar, ao contrário do pretendido, uma boa dose de desconfiança. E isto é tão mais assim quanto, na sua última passagem pelo poder, o PS, representado, na sua faceta demiúrgica, por José Sócrates, exibiu esperança em doses propriamente cavalares, a par de um soberano desdém pela realidade empírica. Até nos conduzir a dois ou três passos do abismo. Estará António Costa, afectando tanta esperança, em condições de nos pedir confiança?