A acreditar nas sondagens diárias que indicam que a coligação está à frente do PS, António Costa está metido numa linda alhada. E, sem maldade nenhuma, ainda bem. Porque é melhor que isso aconteça ao PS do que a nós. São tantas as trapalhadas da campanha do PS – os génios que aconselham António Costa não andam a abusar dos seus talentos – que a ideia de um governo socialista não parece, a julgar pela amostra, nada apetecível.

E, francamente, às vezes dá para pensar que o próprio PS já começa a perceber o poço fundo em que se meteu. Passado o período em que António Costa se apresentava com as roupagens todas da pureza que nos ia salvar, chegou-se a um estado muito diferente. Ele pede confiança, mas nos últimos dias dá mais a imagem de alguém que tem já pouca confiança em si mesmo. Há, é claro, as estridências da praxe para as plateias socialistas. Mas, por detrás disso, transparece muita irritação e alguma tristeza.

Aquela ideia de fazer de Passos Coelho o responsável maior pela vinda da troika a este nosso jardinzinho foi uma coisa a tender para o suicídio. Primeiro, e vária gente já disse isso muito bem, porque, tirando os socráticos indefectíveis, todos nos lembramos, com uma memória quase fotográfica, desses dias que já estão para trás, e do que espelhavam dois rostos: o de Sócrates e o de Teixeira dos Santos. Espelhavam dois sentimentos muito diferentes. O de Sócrates, uma raiva dificilmente contida por a realidade lhe bater com força à porta. O de Teixeira dos Santos, o cansaço e a vontade de se libertar de um colossal peso que o outro lhe havia descarregado em cima. Não há “narrativa” que resista a essa memória.

E, depois, há a própria ideia de narrativa, palavra que, significamente, foi introduzida no nosso vocabulário político por Sócrates, nos tempos da sua ainda fresquinha sofisticação parisiense. Fora do círculo que acompanha António Costa, as pessoas, menos ilustradas, têm tendência a associar narrativa a ficção. E Costa, para as confortar nessa convicção, pretendeu oferecer aos portugueses uma “narrativa” da vinda da troika que era delirantemente ficcional. Daí às pessoas passarem a pensar que todo o seu discurso, todas as suas “narrativas”, comportam um elemento fortemente ficcional, o passo não é tão longo assim. Sobretudo se António Costa as ajuda nessa reflexão com misteriosas ignorâncias como aquela relativa aos cortes nas pensões não-contributivas. É que se fica a pensar que ele se limita a contar-nos histórias.

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Pela minha parte, partilho, confesso, desse sentimento. Há qualquer coisa naquilo que Costa diz que só é crível se tivermos aquele tipo de energia de crença que é requerida para a leitura das obras de ficção. As promessas que faz, dizendo que não as faz, despertam um estranho sentimento de irrealidade. Como é possível acreditar que aquilo é para cumprir? Ele provavelmente não vê essa estranheza, porque precisa de crer que as promessas contêm já em si o princípio da sua realização. Ou, pelo menos, não via até há pouco. Porque aquela tristeza que se sente ao vê-lo falar faz suspeitar que começa a duvidar dos benefícios políticos das suas “narrativas”.

Os costumes políticos permitem, sem dúvida, muita ligeireza. Mas a prática da ficcionalidade sistemática arrasta consigo, a médio prazo, a perda da autoridade. E Costa está claramente numa trajectória de autoridade declinante. O que explica a sua irritação, no outro dia, com o jornalista que o entrevistou na RTP, Vítor Gonçalves. Quem possui autoridade não se irrita facilmente. Quem a não tem, ou a perdeu, cai nessa asneira sem dificuldade. Costa irritou-se porque, com o seu quê de puerilidade, pensou que Vítor Gonçalves não acreditava nele (como se estivesse ali para isso), e tal pareceu-lhe intolerável. É difícil imaginar que não se tenha depois apercebido de como essa sua irritação significava falta de autoridade. Ou que se tenha alegrado com as vozes que, vindas dos subterrâneos do PS, lhe elogiaram o feito. Porque a falta de autoridade era transparente vista de fora.

Com as suas “narrativas”, mesmo as inspiradas no célebre programa dos sábios, António Costa supõe nos outros uma facilidade de acreditar que os portugueses, neste momento, não possuem. A crise, a memória recente dos seus piores momentos, favorece um certo cepticismo que quase se confunde com a pura e simples sensatez. Dito de outro modo: a esperança possível não está onde o PS julga que ela está. Ela não é estimulada pelos numerosos itens incluídos na rubrica “António Costa promete”, sobre a qual André Azevedo Alves escreveu aqui poucas semanas atrás. Nem por proclamações de detestação da direita, como se a simples palavra “direita” devesse provocar medo, com ou sem o adjectivo “radical” ao lado. A esperança está mais agora no que fica ao alcance de um olhar próximo. E o que oferece o PS fica muito longe aos olhos da inteligência, que vê naquilo mais uma miragem do que outra coisa.

Se a quase palpável tristeza de António Costa lhe revelar a presente futilidade das “narrativas”, nem tudo está perdido. Pode ser que aquele radicalismo de se recusar a negociar com o PSD e o CDS  as questões da Segurança Social ou de jurar inviabilizar o Orçamento de Estado de 2016, caso a coligação ganhe, vá por água abaixo. Mas não é verosímil. A reacção mais natural é a da fuga para a frente, quer dizer: acrescentar “narrativa” a “narrativa”, ficção a ficção, à espera que a coisa funcione, com uns pozinhos de agressividade histriónica suplementar. No limite, é verdade, até pode funcionar. Mas começa a ser algo improvável. Os tempos estão para outras coisas. Não estão para a venda de ilusões. Banalmente, não se gera confiança criando desconfiança.