A vitória dos populismos em diferentes partidas deste nosso mundo não tem uma explicação fácil. Sobretudo não tem antídoto seguro. Mas parece que já temos um bode expiatório: as redes sociais e a tecnologia. Se lermos os textos mais recentes de Miguel Sousa Tavares (Expresso), José Pacheco Pereira e Paulo Rangel (ambos no Público) corremos o risco de ficar com a percepção de que Donald Trump ganhou as eleições porque, de repente, se descobriu uma coisa nova a que chamamos “pós-verdade”, ou que estamos a ficar mais ignorantes (ou “novos ignorantes”) porque andamos com um smartphone no bolso e estamos sempre consultá-lo, ou ainda que estes instrumentos corroem o valor da liberdade em democracia.

Peço desculpa, mas acho que seguindo por este caminho estamos de novo a tentar tapar o sol com uma peneira. E que estamos, sobretudo, a ignorar a mensagem que os eleitores enviaram ao votarem “errado” – pelo menos “errado” de acordo com a nossa perspectiva.

Começo recordando uma história que já contei aqui no Observador, a de Lee Mavrakis, o mayor de Monessen, uma pequena cidade da Pensilvânia que, depois de ter sido toda a vida um activo eleitor democrata (e um sindicalista), acabou agora por optar por Trump. E recordo-a por uma razão simples: a primeira coisa que Lee me disse quando entrei no seu gabinete, em Julho do ano passado, foi que mandara retirar o computador da sua secretária – o ecrã estava de resto virado contra uma parede numa estante, abandonado e cheio de pó. O antigo operário siderúrgico não fazia pois ideia do que era uma rede social, só utilizava o telemóvel para fazer chamadas e não creio que tenha sido influenciado por qualquer das mentiras sobre Hillary Clinton difundidas um jovem búlgaro. Ele pura e simplesmente sentia-se esquecido pelas elites de Washington e ignorado por um Presidente Obama a quem enviara sucessivas cartas (não emails).

Esta história vale o que vale, mas é uma entre muitas que a imprensa americana (e de todo o mundo) começou a contar com mais detalhe depois da surpresa das eleições. Se quisermos perceber onde é que os diferentes populismos encontraram audiência temos de perceber quem votou pelo Brexit em vez de diabolizar os ingleses pobres; tal como temos de compreender o sentido profundo da arrogância que está por detrás da referência de Hillary aos “deploráveis” ou da forma como Mateo Renzi quis impor a sua vontade aos italianos; de perceber que há bairros inteiros em França (mas também noutros países europeus) onde os nacionais sentem que não estão já no seu país; e de enfrentar sem dogmas a evidência de que os cidadãos têm, um pouco por todo o lado, a percepção que já nem pelo voto são senhores do seu destino.

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As redes sociais e a tecnologia não criaram estas realidades. As redes sociais não passaram de bestiais (no tempo em que ajudaram a eleger Obama ou atraiam multidões para os comícios de Bernie Sanders) a bestas (só porque Trump é um incontinente do Twitter). As ondas geradas pelas redes também não passaram de boas demonstrações de cidadania (quando, por exemplo, procederam ao linchamento de Isabel Jonet) a serem apenas uma “ditadura das massas” (quando estão menos ao nosso gosto).

A “pós-verdade” também não nasceu ontem. Antes dela houve o boato, e sabemos como este provocou motins e até massacres (recordam-se da chacina dos judeus de Lisboa naquela que ficou conhecido como a “matança da Páscoa de 1506”). Ou como levou a corridas aos bancos e ao crash das bolsas. Por vezes boatos mal-intencionados, por vezes inocentes, quase sempre mais difíceis de combater antes deste tempo de informação instantânea. Um pouco de memória é sempre útil para colocarmos a realidade, mesmo que desagradável, no seu contexto. A crueldade e a irracionalidade das multidões são parte da nossa história e nunca deixámos nem deixaremos de as enfrentar. A Marcha sobre Roma de Mussolini não precisou do Twitter (ou da televisão) para acontecer.

Mais: que sentido faz indignarmo-nos com a “pós-verdade” neste tempo em que a política se faz sobretudo de “narrativas” – um conceito introduzido em Portugal por José Sócrates e ainda hoje reclamado pelas luminárias do PS. Ou que sentido faz reclamar que o debate público só se faça de verdades certificadas quando os mesmos factos (os números da dívida, ou do crescimento, ou do desemprego) podem servir copos meio-cheios e copos meio vazios? O caminho tem de ser mais inteligente e mais racional, pois não bastará pensar que tudo se resolverá com um batalhão de “fact checkers” a trabalhar para o Facebook.

E aqui chegamos a um segundo campo de problemas: o da mediação e validação da informação. Ou o da erosão do papel do jornalismo como certificador do que é verdadeiro e do que é falso, ou como definidor do que é importante e do que é dispensável. Mais uma vez é necessário ter uma perspectiva de longo prazo: a crise da imprensa escrita é muito anterior à explosão das redes sociais, começou até antes da vulgarização da Internet (se bem que não possa ser dissociada desta última). A crise da televisão generalista é mais recente, mas também é inelutável: num artigo recente Tony Blair referia com mágoa que, quando foi eleito pela primeira vez, há 20 anos, o principal noticiário da BBC era visto por 10 milhões de britânicos; agora é visto por apenas 2,5 milhões. Podemos encontrar números semelhantes em todos as democracias avançadas: a perda de audiência dos principais serviços noticiosos é uma regra um pouco por todo o lado.

Porque é que isto aconteceu e continua a acontecer? Em parte porque mudou a tecnologia e mudaram os hábitos. O utilizador deixou de ser um espectador passivo, obrigado a seguir o alinhamento escolhido pelos responsáveis dos telejornais – passou a escolher o que quer ver e quando quer ver, ou o que quer ler e quando quer ler. Se já não estamos no tempo em que Ford dizia que os clientes dos seus carros podiam escolher a cor que quisessem desde que fosse preto, também já não estamos no tempo o jornalista comandava sozinho o “trânsito” da informação.

Em princípio esta maior capacidade escolha – e uma maior diversidade da oferta informativa, assim como mais concorrência – deveriam ser notícias positivas. Porque estamos então preocupados? A resposta tem de ser dura e directa: porque quando o público teve possibilidade de escolher, verificou-se que tinha muito menos confiança nos jornalistas do que se pensava. Quando se troca a leitura de jornais pela leitura de uma notícia partilhada no Facebook não se está apenas a poupar o custo e o trabalho da ida à banca – está-se a aceitar a recomendação de alguém das nossas relações, alguém mais próximo de nós, alguém em quem confiamos ou com quem nos identificamos. Mas não só: está-se também a virar as costas a um jornalismo que muitas vezes nos diz muito pouco, um jornalismo que anda demasiado à volta do seu umbigo, um jornalismo onde se desmerece as pessoas comuns pois, na maioria das redações, todos elas não passam realmente de “deploráveis”. Ou então de gente xenófoba. Ou homofóbica. Ou o que nos vier à cabeça.

Muitos órgãos de informação nos Estados Unidos reconheceram, depois de uma derrota que também foi sua – não houve um único grande título que recomendasse o voto em Donald Trump –, que também eles estavam como que “cortados” da realidade. O que se discutia nos círculos de Washington, nos cafés do Soho em Nova Iorque ou nos restaurantes da moda em Los Angeles nada tinha a ver com o que preocupava os munícipes de Lee Mavrakis ou toda essa massa de eleitores a quem chamam “white trash”. Mas não sei se aprenderam a lição e se arrependeram, pelo que continuo a ler nos sites “de referência”.

Esta evolução tem um terrível efeito sobre a saúde da democracia, pois a democracia exige que todos possamos falar com todos. Na Grécia antiga isso fazia-se na Ágora, nos tempos modernos isso faz-se nos meios de comunicação de massa. Faz-se ou fazia-se: ao desertarem, muitos eleitores começaram a falar apenas com aqueles que pensam da mesma maneira, e aí sim as redes sociais podem ter o efeito perverso de potenciar a fragmentação e atomização do debate público, num processo de auto-guetização e auto-segregação. Só se fala com quem pensa como nós, fecham-se os ouvidos a todos os outros argumentos.

Mas este é o momento final, não o inicial. As redes sociais, como a televisão por cabo, como o Google, como os smartphones, estão para ficar – como esteve para ficar a máquina a vapor no dia em que começou a substituir o trabalho braçal e a aterrorizar os ludistas. Como o Sol não se tapa com uma peneira, não se pára um mundo em mudança. Usa-se é a nosso favor, como sempre sucedeu no passado com qualquer desenvolvimento tecnológico: o aço com que se construíram os canhões da I Guerra Mundial foi também o que permitiu os carris dos caminhos de ferro e o esqueleto dos arranha-céus.

Algo, no entanto, temos de reter: mais do que as novas ignorâncias dos cidadãos comuns, mais do que os efeitos de manada das redes sociais, quem tem falhado são os que insistem em não ouvir os eleitores. Porque estes há muito que deram sinal de que querem falar, pois estão zangados. E não se iludam: há mais problemas pela frente, pois em 2017, pelo menos na Europa, todos estarão apenas empenhados em esconder o lixo debaixo dos tapetes. O mais difícil ficará para depois, quando for ainda mais difícil. E se formos a tempo.