Eu confesso a minha perplexidade: não entendo as pessoas de esquerda. Não, não se trata da mania de por o estado em tudo, de achar que o burocrata de serviço ou o legislador sabem melhor do que eu tomar conta da minha vida (isso também não percebo). Nem a afeição (incompreendida pela minha pessoa) por empresas públicas mal geridas. Nem sequer do amor sem limite por impostos (entendo ainda menos). (E, a propósito de impostos, como munícipe de Lisboa agradeço publicamente ao PS da Câmara de Lisboa e a Helena Roseta terem chumbado a proposta do PSD e CDS para reduzir em Lisboa o IMI às famílias com filhos. Tal mimo não será esquecido.)

Não, desta vez o que não percebo na esquerda é a sua visão das mulheres. Deixemos por agora de lado os factos de o magnífico Syriza, farol de todas as esperanças à esquerda, ter conseguido fazer um governo sem nenhuma senhora. Ou de Corbyn, a mais recente paixão dos socialistas nacionais com acesso às redes sociais, ter constituído um governo sombra all male. Juro que não vi nem o mais pequeno resquício de fanico nos esquerdistas lusos à conta de tanto exuberante machismo. Mas deixemos o internacionalismo.

Por cá tivemos animação suficiente com assuntos femininos. Joana Amaral dias despiu-se. Duas vezes. Eu digo já que devo ser a única pessoa em Portugal sem opinião sobre isto. Até achei graça à reincidência, com mensagem ‘Ai não gostaram da primeira vez? Tomem lá a segunda.’ O meu mau feitio era capaz produzir algo semelhante. Eu não votaria em Joana Amaral Dias antes das fotografias e não votarei depois. Em todo o caso, declaro-me não chocada. E até concordo que o corpo é uma arma política (se assim nos apetecer). Acrescento ainda que as roupas femininas (ou a sua exiguidade), nestes tempos de apaziguamento dos europeus aos costumes islâmicos dos imigrantes e refugiados, são importantes statements políticos. Donde: desde que Joana Amaral Dias não se faça fotografar de niqab ou burqa, por mim aplaudo todas as suas fotografias (mas não voto nela).

No entanto o mais curioso foram as reações da esquerda. Tanto mais que há um ano Isabel Moreira publicou no seu facebook fotografias coberta de lama e tapando o peito com as mãos (tal como Joana Amaral Dias) e só se ouviram vozes a chamar botas de elástico a quem ficou perplexo com a deputada socialista. Mas desta vez houve direito a escândalo. Marta Rebelo, aparentemente à beira de um ataque de nervos, ficou ofendidíssima e quase declarou que agora candidata que não se dispa não consegue ser eleita. Pedro Marques Lopes (não é um lapso a inclusão na esquerda) informou Joana Amaral Dias, no Facebook, que não ganharia votos por se despir muitas vezes. E (a minha preferida) a candidata do Livre Ana Matos Pires, entre perguntas com nexo como a posição face ao acesso à PMA por mulheres solteiras, entendeu pedir satisfações por Joana Amaral Dias já ter dado nome à sua filha. Depois de se rirem por uma candidata de um partido que se chama Livre achar que outra mulher não pode dar o nome ao bebé que tem na barriga quando bem entende, vão lá verificar, não vá o diabo tecê-las, se consta do programa do partido alguma coisa sobre decisões parentais de nomear os filhos. (Eu falei lá em cima dos burocratas e legisladores de esquerda que gostam de decidir a nossa vida, não falei?)

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Ficamos avisados, portanto, que só é admissível despirem-se as candidatas e deputadas do PS. Para as outras, roupa abundante, sff.

A mesma coerência se pode aplicar ao estrépito pelas declarações de Paulo Portas, afirmando que as mulheres têm de organizar a casa, pagar as contas a dias certos e prestar cuidados a pais e filhos. Bom, eu que pertenço à geração de partilha de tarefas domésticas achei esta visão do papel feminino um tanto anacrónica, mas sei bem que ainda é a que se aplica na maioria dos agregados familiares. Não é por acaso que tanto se discute o tema da sobrecarga que as mulheres têm por acumularem emprego com a quase totalidade do trabalho doméstico. Paulo Portas constatou um facto, não defendeu nenhuma suposta ordem natural da organização familiar.

Mas, claro, houve rasgar de vestes e epítetos múltiplos de salazarento para Portas. Ora deixem-me regressar à entrevista que Fernanda Tadeu, mulher de António Costa, deu ao jornal do PS. Nela, a senhora diz: ‘Ser-se mulher na minha geração é uma tarefa difícil […] Passar a ter uma profissão e uma carreira e juntarmos a ela as tarefas tradicionais da educação dos filhos, de organização da casa, foi difícil para mim e foi difícil para a maior parte das mulheres portuguesas.’ E descreve a sua vida depois da curta viagem a Veneza: ‘foi uma lua-de-mel em cheio! Sozinha e a lavar fardas cheias de lama.’ E ainda refere que Costa faz ótimos petiscos mas ‘a cozinha fica num estado lastimável’ se Fernanda não estiver lá – a limpar, presume-se.

Em resumo: a mulher de Costa lavava as fardas cheias de lama do marido, organizava a casa, tratava da educação dos filhos, acumulava profissão com tarefas domésticas e limpa a cozinha que o marido suja. Parece-me a mim uma divisão extremamente tradicional e pouco moderna das tarefas domésticas e familiares. Vou ficar a aguardar pelas manifestações estridentes das senhoras de esquerda chamando salazarento a António Costa.