Há dias, a Pátria e os seus arredores foram agitados pelo rumor de que o governo hesitava na reposição imediata da semana de 35 horas para a função pública: talvez fosse “faseada”. O PCP, através do seu heterónimo sindical, avançou logo com uma “semana de luta”. António Costa, entretanto, resolveu tudo: as 35 horas virão mesmo a 1 de Julho. Mas o PCP não se comoveu: manteve a luta, incluindo a “manifestação nacional” de hoje, entre a praça Camões e o largo de S. Bento. Que quer isto dizer?
Vasco Pulido Valente chamou “geringonça” à actual maioria parlamentar. Eduardo Lourenço descobriu nela um “milagre de Fátima”. A verdade é que há quarenta anos que o PCP propunha o milagre. Poderia ter acontecido há quase trinta anos, em 1987, não fosse o presidente Mário Soares ter optado pela dissolução da Assembleia da República. Durante muito tempo, pensou-se que o milagre teria de consistir numa convergência fundamental: ou bem que o PCP se convencia das vantagens da social-democracia, ou bem que o PS se convertia aos prodígios do comunismo. O facto é que a geringonça foi consumada sem que ninguém se tivesse convencido ou convertido. Por isso, se bem que tenha servido aos seus sócios para se livrarem de um “governo de direita”, não lhes serviu, até ver, para se livrarem uns dos outros.
O PCP não mantém só as ideias. Mantém também as tácticas. No parlamento, faz parte da maioria que sustenta o governo; na rua, faz parte da oposição que ataca o governo. Em algumas versões, não é bem o governo, mas as “pressões externas” que o governo reflecte. Noutras, é mesmo o governo. Eis o que se lê no site do sindicato dos Trabalhadores em Funções Públicas do Sul: “Sete meses de Governo e, apesar das muitas promessas, o PS não tomou qualquer medida para melhorar a situação dos trabalhadores. Estamos fartos de promessas! É hora de agir!”
Nada disto é inédito. Da última vez que o PCP esteve no poder, no VI Governo Provisório, em 1975-1976, foi a mesma coisa: por um lado, sentado no conselho de ministros, com o PS e o PSD (então PPD); por outro, na rua, com os “trabalhadores”, a cercar a Assembleia da República. Um pé dentro e outro pé fora.
Tal como então, a luta serve ao PCP para várias coisas: em primeiro lugar, para sacudir a árvore do governo, a ver o que mais pode cair, depois do domínio que já obteve para os seus sindicatos nos transportes públicos e no Ministério da Educação. Mas tão importante como a conquista de posições no Estado, está, para o PCP, a necessidade de conservar as credenciais revolucionárias, ao mesmo tempo que apoia um governo supostamente vinculado aos objectivos da zona Euro.
No Outono passado, o PCP não podia permitir que a governação da direita se prolongasse. A erosão dos sindicatos era demasiado grave (menos 10% de filiados desde 2012). Mas também não pode deixar, como não deixou até agora, que alguma réplica nacional do “Podemos” o ultrapasse na contestação à “austeridade”. Por isso, apesar da aparente concessão de António Costa no caso das 35 horas, a “luta continua”. O horário dos funcionários, seja ele qual for, é, para o PCP, menos importante do que as greves, os plenários, e as manifestações em que usa esses funcionários para ocupar o espaço público: “a luta é o caminho”.
Não estou a dizer que, com isto, o governo está para acabar. Pelo contrário: é assim que o governo está para durar. Os sócios do PCP jogam o jogo: neste caso das 35 horas, o BE, que nunca há-de decidir se quer ser um PS mais radical ou um PCP mais moderado, propôs-se “conversar“, mas foi fazendo de eco do PCP; António Costa conformou-se, mas logo a seguir permitiu a Mário Centeno dizer outra coisa. Enquanto este xadrez de equívocos for possível, o milagre da geringonça será possível. O PCP até pode estar a morrer, segundo nos dizem os sábios depois de cada eleição. Mas, como dizia o velho Marx, é um morto que agarrou os vivos.