Na exposição do Almada Negreiros, li uma citação que faz sentido para o que se passa hoje na Europa. Não garanto que a cite com exactidão, “os olhos com que vejo não são os meus olhos mas os olhos deste século.” Desde o ano passado, quando pela primeira vez os eleitores de um estado membro decidiram abandonar a União Europeia, são os olhos do século XXI que estão a olhar para o mundo. Os olhos atravessaram a Mancha e olham agora para a revolução francesa em curso.

É impossível exagerar o que se está a passar em França. Entre as esquerdas, o partido socialista acabou. O seu candidato, Benoit Hamon, dificilmente chegará aos 10% dos votos. À direita, Emmanuel Macron, e à esquerda, Jean-Luc Mélenchon, estão a destruir o partido. Até ao fim da semana passada, todos julgavam que Macron estaria seguramente na segunda volta. Mas hoje ninguém sabe. Mélenchon tem estado a crescer e a tirar votos a Hamon. As sondagens servem de pouco. Não conseguem prever o comportamento de um eleitorado muito volátil. No próximo domingo, é possível assistir Mélenchon chegar à segunda volta e Macron ficar de fora.

No lado direito do sistema político, depois dos problemas com a justiça, o candidato dos Republicanos, François Fillon, parecia estar derrotado. No entanto, a uma semana da primeira volta, ainda tem algumas hipóteses de chegar à segunda volta. Marine Le Pen está a fazer uma campanha fraca, e tem os seus próprios problemas com a justiça. Permitiu assim que Fillon ainda esteja na corrida. Se Le Pen passar à segunda volta e Fillon for derrotado, ainda o cenário mais provável, tal como os socialistas, os Republicanos enfrentam uma crise existencial. A chamada “maioria republicana” contra os extremos políticos não vai sobreviver. Contra um candidato de esquerda, muito do eleitorado de direita votará em Le Pen. Se o candidato à esquerda for Macron, a direita republicana vai dividir-se. Se for Mélenchon a passar à segunda volta, a direita vai unir-se à volta de Le Pen. Poderia ser o fim do Partido Republicano. Seria o confronto entre as forças radicais, e a derrota dos partidos tradicionais. A extrema direita contra a extrema esquerda. O cenário de pesadelo para a Europa.

Se apesar de tudo, a segunda volta acabar por ser entre Le Pen e Macron, não acredito que o antigo ministro da Economia ganhe facilmente, apesar do que dizem as sondagens. A segunda volta será uma nova eleição. Macron tem muitas fragilidades. Pouca experiência, como se tem visto durante a campanha e demasiado próximo de Hollande, o Presidente mais impopular da história da V República. Além disso, já o disse uma vez e repito: não estou seguro que os franceses escolham um antigo banqueiro para Presidente. Se alguém nos dissesse há seis meses que o próximo Presidente francês seria um político que nunca foi eleito, sem um partido a apoiá-lo, e um antigo banqueiro, quem acreditaria?

Pode ainda haver acontecimentos inesperados. Sarkozy ainda é o líder dos Republicanos. Imaginem que, para salvar o seu partido, Sarkozy faz um acordo com Le Pen. A Frente Nacional deixa cair o abandono do Euro e Sarkozy aceita uma política dura em relação à imigração. Com esse acordo, Le Pen teria muito provavelmente, no caso de ser eleita, uma maioria na Assembleia Nacional. Sarkozy, líder do maior partido parlamentar, poderia mesmo ser o próximo primeiro-ministro. Uma geringonça na direita francesa.

Se Macron ganhar e Le Pen for derrotada, o partido Republicano sobrevive e o futuro da política francesa vai decidir-se nas eleições parlamentares. Nesse caso, teremos dois cenários possíveis. O movimento político Em Marcha ganha as eleições e Macron torna-se o novo senhor da política francesa. Se vencerem os republicanos, teremos uma coabitação entre a direita e o centro. Mas será uma maioria instável, e não uma grande coligação à alemã. Seria o fim da V República e a italianização da política francesa. Quem quiser ter uma pequena ideia do que seria, estude a história da IV República entre 1945 e 1957.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR