O governo liderado por António Costa achou por bem alargar a possibilidade de acesso à ADSE aos filhos com menos de 30 anos de actuais beneficiários do sistema assim como – mediante o pagamento da mesma taxa de 3,5% aplicada aos actuais beneficiários – a cônjuges de funcionários públicos e a trabalhadores em entidades públicas empresariais. São medidas – pelo menos as duas últimas – que podem ser louvadas por alargarem o leque de cidadãos com acesso a maior liberdade de escolha nos cuidados de saúde num quadro de sustentabilidade financeira, mas simultaneamente agravam os problemas de equidade associados à ADSE enquanto sistema exclusivo dos trabalhadores do Estado e vedado aos restantes cidadãos.

Conforme notei em artigo anterior sobre a ADSE, é bizarro que num país em que existe um SNS estatal e universal, seja o próprio Estado a oferecer paralelamente aos seus funcionários e pensionistas um subsistema de saúde exclusivo que se traduz na garantia de uma considerável liberdade de escolha que continua a ser negada ao resto da população.

Mais bizarra ainda foi a argumentação da deputada bloquista Joana Mortágua para defender a manutenção do estado de privilégio dos funcionários públicos, o alargamento da cobertura aos cônjuges sem necessidade de descontar 3,5% e a exclusão e discriminação agravada do resto dos cidadãos portugueses. Conforme deu conta o Jornal de Negócios, a extraordinária linha argumentativa da bloquista assumiu a seguinte forma:

A abertura da ADSE a outras pessoas que não funcionários públicos (e respectivos familiares) “não faz sentido”, porque “estaria a alargar o acesso de utentes aos hospitais privados com prejuízo claro para o SNS”. Por isso, “a ADSE deve manter-se como um sistema fechado aos funcionários públicos e às suas famílias”.”

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Ou seja, para o Bloco de Esquerda a ADSE é um benefício para os funcionários públicos que deve ser alargado e reforçado mas que deve simultaneamente continuar vedado aos restantes cidadãos portugueses, presumivelmente pertencentes a uma casta inferior que não merece a liberdade de escolha e pode ser sacrificada no altar ideológico do SNS.

Curiosamente – ou talvez não – esta gritante situação discriminatória não parece também levantar quaisquer problemas no âmbito do enquadramento constitucional português, não tendo até ao momento sido vislumbrado pelas instâncias competentes qualquer conflito com o amplamente celebrado princípio da igualdade.

Desde que a ADSE seja auto-financiada e sustentável – uma mudança estrutural que Portugal deve ao governo liderado por Pedro Passos Coelho – não há razões para abolir o sistema. E a partir do momento em que o sistema pode legitimamente continuar a existir é inaceitável que haja cidadãos portugueses de primeira e de segunda no que diz respeito à possibilidade de a ele acederem.

Como oportunamente sintetizou Carlos Guimarães Pinto:

A ideia da ADSE é boa. Oferecer liberdade de escolha na saúde é uma boa medida. Que o estado deixe de ser prestador de cuidados de saúde para ser apenas financiador e regulador é um bom passo em frente na desestatização da saúde. Dito isto, permanece a desigualdade: apenas é dado o direito de escolha aos funcionários públicos. Enquanto os funcionários do sector privado apenas têm acesso aos seguros privados, os funcionários públicos têm acesso aos seguros privados e ao seguro público (ADSE). O seguro é público, mas não é de todos.

Por isso se justifica integralmente a petição pelo alargamento do acesso à ADSE a todos os trabalhadores, bem como a respectiva fundamentação:

É uma discriminação injusta e injustificada que o acesso a um serviço de saúde superior como aquele que é providenciado pela ADSE esteja restrito aos trabalhadores da função pública. Não encontramos qualquer motivo para que a existência desta discriminação entre cidadãos portugueses no acesso a cuidados de saúde se mantenha depois de mais de 40 anos de democracia. Os peticionários vêm por isso propor que a possibilidade de beneficiar da ADSE seja aberta a todos os trabalhadores portugueses, nas mesmas condições, independentemente do empregador.”

Seria bom que os mesmos governantes e políticos que tanto gostam de invocar o princípio da igualdade fossem – por uma vez – consistentes na sua aplicação, até porque o que está em causa é a saúde dos portugueses.

Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa