Creio que tem muita razão o Presidente da República em sublinhar o consenso nacional em torno das comemorações do 25 de Abril que hoje se celebram. Também creio que deve ser apoiado o seu empenhamento no que tem designado por “descrispação” do ambiente político nacional. Essa foi seguramente a mensagem crucial do 25 de Abril de 1974: um golpe militar basicamente pacífico que prometeu devolver aos portugueses a liberdade tranquila para poderem auto-governar-se no respeito pelas diferentes opiniões e disposições de cada um.
Essa mensagem de unidade nacional em torno da liberdade e da democracia foi infelizmente ameaçada pouco depois do 25 de Abril. A partir do 28 de Setembro de 1974, e sobretudo do 11 de Março de 1975, o chamado PREC (processo revolucionário em curso) tentou capturar o projecto democrático do 25 de Abril e transformá-lo numa nova ditadura. Chamava-se “democracia popular”, ou “democracia a caminho do socialismo”, ou “poder popular de base” ou outras designações afins. Basicamente, tratava-se de tentar instalar uma nova ditadura, desta vez de sinal contrário à que fora derrubada no 25 de Abril.
A ameaça de nova ditadura podia ter dado lugar a uma guerra civil entre facções políticas irredentistas de sinal contrário. Mas não deu. Graças à grande coligação das forças democráticas — lideradas na época por Mário Soares, Sá Carneiro e Freitas do Amaral — e graças ao apoio das democracias euro-atlânticas ocidentais, foi possível restabelecer o projecto democrático original do 25 de Abril. Essa restauração do 25 de Abril deu-se a 25 de Novembro de 1975 (uma data curiosamente ignorada em Novembro passado pela actual maioria parlamentar, por alguns chamada “maioria de esquerda”).
Ao recordar estas datas de todos conhecidas, talvez possa ser também recordado que, entre 28 de Setembro de 1974 e 25 de Novembro de 1975, Portugal assistiu à última tentativa de revolução comunista na Europa. E que, até ao 25 de Abril de 1974, Portugal albergou a mais longa ditadura do século XX europeu. Talvez exista alguma relação entre estes dois “excepcionalismos” nacionais.
No editorial da edição 58 da revista Nova Cidadania, que em Fevereiro último foi dedicada aos 40 anos do 25 de Novembro de 1975, argumentei que uma dessas cruciais relações assenta no poder das ideias… e no perigo da ausência delas.
Sob a censura do Estado Novo (precedida pela anarquia autoritária da I República), cresceu a aridez do debate político entre nós. A censura prévia e a prisão dos dissidentes anulava a necessidade de concorrência entre ideias rivais. Sobre essa aridez ou ausência de debate de ideias, germinou a “doença infecciosa” (como Edmund Burke chamou às ideias da revolução francesa) do radicalismo provinciano, da inveja igualitária, do dogmatismo revolucionário.
A queda abrupta do Antigo Regime, a 25 de Abril de 1974, confirmou a ideia Burkeana de que as revoluções resultam de reformas adiadas. Mas também ilustrou o seu alerta precoce de que as ideias têm consequências — e de que, em última instância, elas só podem ser enfrentadas pelo poder de outras ideias.
Talvez não seja deslocado recordar hoje como a ausência de ideias no Estado Novo abriu caminho às ideias revolucionárias do PREC e à sua capacidade de atracção, sobretudo entre a juventude estudantil (onde eu na altura me encontrava). Essa capacidade de atracção das ideias revolucionárias parece agora estar a ser retomada pelo chamado Bloco de Esquerda, como foi aqui oportunamente recordado na semana passada por José Manuel Fernandes (“Um dia destes acordamos nas mãos do Bloco”).
Muitas coisas mudaram, felizmente para melhor, ao longo dos últimos 42 anos. Mas não mudou o facto perene de que as ideias têm consequências — e a ausência delas também. Se as ideias fracturantes, autoritárias e anti-ocidentais do “Bloco” não forem tranquila mas firmemente contrariadas por ideias dialogantes, democráticas e ocidentais, aquelas irão paulatinamente ocupando o lugar deixado vazio por estas.
Mais concretamente, é preciso mostrar com argumentos tranquilos e firmes o que se encontra nos alicerces intelectuais do Bloco de Esquerda. E o que lá se encontra não é muito diferente da inimizade contra as ideias ocidentais que a revista The Economist acaba de reportar na última campanha ideológica do partido comunista chinês: a inimizade contra a democracia constitucional ocidental; contra o conceito de valores universais; contra a sociedade civil; contra o chamado neoliberalismo e contra a ideia ocidental de jornalismo (pp. 49-50).
Por outras palavras, as ideias têm consequências — e a ausência delas também. Ou, como também costumava dizer Edmund Burke, para que o mal prevaleça basta que os homens bons não façam nada. Talvez não fosse pior recordar estes alertas no dia em que comemoramos os 42 anos do 25 de Abril e a sua mensagem de diálogo democrático e ocidental.