O João Miguel Tavares tem razão acerca do caso de violência doméstica entre Bárbara Guimarães e Manuel Maria Carrilho. O caso é notícia, tanto porque os episódios que marcam a ruptura do casal são públicos como porque não podem ser confundidos por mexericos privados: a violência doméstica é um crime público, não é para se esconder dentro de portas. Como tal, o caso Bárbara/Carrilho não é nem mais nem menos do que os outros, não se distingue dos restantes e, como todos eles, deve ser conhecido e noticiado.
Mas há um aspecto em que o caso Bárbara/Carrilho se distingue da maioria dos outros e que merece ser realçado: o carácter inesperado da violência que marcou a sua relação. E foi inesperado não porque ambos são figuras públicas (isso é irrelevante), mas porque se associa intuitivamente a violência doméstica (talvez por preconceito) a sintoma de pobreza. Dito de outro modo, esta violência não era expectável num casal tão bem-sucedido profissional e pessoalmente.
Preconceito ou não, a realidade é que os dados estatísticos oficiais e recentemente publicados (referentes ao ano de 2013) confirmam essa estranheza. De facto, sem haver uma relação causa-efeito, a violência doméstica está associada a baixos rendimentos e a défices de instrução escolar. Maioritariamente homens (88%), um terço dos agressores está desempregado. Observando as qualificações, destaca-se o facto de apenas 6,5% dos agressores ter ensino superior completo, sendo que 70% dos agressores concluiu, no máximo, o 9.º ano de escolaridade (25% apenas concluiu o 4.º ano). Em relação às vítimas, tirando o facto de esmagadoramente serem mulheres, o perfil é, em grande medida, similar.
Ora, nem Bárbara nem Carrilho encaixam nesses perfis, visto que ambos detêm um nível cultural muito acima da média nacional. Em particular, Carrilho – foi ministro da cultura, é um homem reconhecidamente culto e faz parte da nossa elite intelectual, não tendo, portanto, o perfil habitual do homem violento. Ou seja, esse carácter inesperado existe, não pode ser posto de parte e, em vez do voyeurismo habitual, deveria estar no centro das notícias sobre este caso. Porquê? Porque nele se declara que ninguém está imune à violência doméstica.
É compreensível que a notoriedade de Bárbara e Carrilho aguce o apetite dos voyeurs e das publicações sensacionalistas. Mas, da perspectiva do dever de informação, o que importa e torna este caso especialmente notável (comparativamente a outros crimes de violência doméstica) está muito para além disso. É que o que surge na aparência enquanto um caso excepcional é, na verdade, um alerta. Afinal, ninguém está livre de se encontrar numa situação de violência doméstica. Eis o que o caso Bárbara/ Carrilho simboliza e eis a lição que nos ensina: a de que, apesar dos preconceitos e das tendências estatísticas, a violência doméstica não conhece fronteiras de classe social ou de formação escolar.
A lição parece óbvia, é certo, mas não o é num país onde ainda domina a concepção de que a civilidade está relacionada com a educação ou com o berço – como se estudar ou ser filho de “boas famílias” fosse garantia de exemplar conduta cívica ou de rectidão ética e moral. Fruto do nosso atraso na massificação do ensino, Portugal ainda tem vestígios daquele país saloio que se curva perante os senhores doutores e que vê nesse estatuto uma afirmação de autoridade moral. É tudo uma questão de tempo. Um dia, quando todos os portugueses tiverem elevados níveis de instrução, será claro que a relação entre educação escolar e civilidade não é directa.
Desde há séculos que acreditamos, enquanto sociedades ocidentais, que a educação emancipa os homens e os afasta da barbárie. Por um lado, não nos enganámos. O aumento dos níveis de instrução nas sociedades europeias trouxe mais liberdade, maior desenvolvimento social e mais prosperidade. Mas, por outro lado, esquecemos que, mais do que através da educação escolar e da aquisição do conhecimento, a barbárie se vence com a afirmação de valores humanistas.
* N.R.: Por sugestão do autor, foi eliminada a última frase do texto.