A co-adopção por casais do mesmo sexo foi discutida e votada nesta legislatura. E foi chumbada, mesmo que por poucos votos. Logo na altura do chumbo, o Bloco de Esquerda (BE) anunciou que voltaria ao tema. Cumpriu: os projectos de lei foram entregues e, em breve, o Parlamento apreciará novamente o assunto. Na imprensa, o debate já arrancou.

Dá para imaginar que o que aí vem será, em grande medida, idêntico ao que passou. Os mesmos argumentos, as mesmas posições, as mesmas acusações, a mesma intolerância mútua. E os mesmos resultados. É, aliás, precisamente essa a questão. Podemos repetir tudo e discutir outra vez os prós e os contras da co-adopção por casais do mesmo sexo. Podemos recomeçar do zero. Mas devemos também questionar-nos sobre o que levou o BE a regressar ao tema, apenas alguns meses após este ter sido chumbado no Parlamento. Desde então, o debate aprofundou-se? Surgiram novos factos ou novos argumentos? Da parte dos deputados, houve sinais de que poderiam surgir alterações no sentido de voto? Nada disso. Só ficámos uns meses mais próximos das eleições legislativas.

Esse é, pois, o ponto-chave. A insistência do BE não reage ao debate ou à necessidade de o aprofundar – poucos assuntos, mesmo aqueles com impacto directo na vida de muitas mais pessoas, foram tão discutidos na comunicação social como foi este da co-adopção. E também não responde a alterações de posição dos deputados, dando a entender que, desta vez, a viabilização da medida seria possível – nem houve tempo para isso, porque a iniciativa do BE foi anunciada logo após a votação e chumbo da medida, há uns meses. Essa insistência é, portanto, apenas um acto antecipado de campanha eleitoral, em que o BE tenta ser o partido que já foi, antes de o PS lhe ter roubado esse espaço: o das causas fracturantes, da esquerda cosmopolita, moderna e urbana. É, no fundo, o BE a projectar o seu futuro no que foi o seu passado. Como se não fosse óbvio que o passado não volta.

Esta opção eleitoral do BE diz muito. Primeiro, sobre o seu respeito pelas instituições democráticas e sobre o seu aproveitamento de uma luta que diz valorizar mas que está disposta a sacrificar para fins eleitorais. Afinal, o BE vai reiniciar o processo de avaliação da co-adopção apenas para dizer que o fez, sem qualquer ambição de obter resultados políticos e disposto a desgastar o debate público sobre o tema – prejudicando, até, a viabilização futura da medida. Com tantas vozes indignadas por aí contra os partidos, e que só vêem inutilidade e perdas de tempo no trabalho parlamentar, é espantoso como quando o protagonista é o BE fica tudo mudo.

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Segundo, a iniciativa diz muito sobre o vazio político em que se enfiou a esquerda europeia, em particular a esquerda radical. Sem querer seguir o caminho de ruptura dos comunistas – renegar o euro, a UE, as instituições internacionais para viver orgulhosamente sós –, a esquerda radical não só não conseguiu uma alternativa realista à austeridade, como viu o seu eleitorado perder a paciência com as suas habituais soluções irrealistas. De modo que, naquilo que é dominante no debate político da actualidade (a economia e as finanças), essa esquerda representada pelo BE não tem voz. O que sobra? As causas fracturantes. Ou, pelo menos, era o que sobrava antes de o PS, através de algumas das suas personalidades mais à esquerda, ter absorvido essas lutas na sua própria agenda. Agora, na verdade, já não sobra nada.

Assim, esta opção eleitoral do BE é, sobretudo, uma espécie de suicídio involuntário. Da medida da co-adopção em si, que se sujeitará a mais um chumbo no Parlamento e ao desgaste público de mais um debate acalorado. E do BE que, sem querer, assume que a sua mais-valia ideológica e de representação política está esgotada – as causas fracturantes deixaram de ser um factor de diferenciação do BE, para ser partilhada pelo PS, pelo que é improvável que ainda lhe valha votos.

Defenda-se o que se defender, discutir neste momento a co-adopção por casais do mesmo sexo é uma inutilidade e uma cedência a um capricho do BE. Falta um ano para as eleições legislativas. Até lá, não dá para saber se o BE está, como mostram as sondagens, em vias de desaparecer. Mas dá para perceber que, a continuar assim, está a fazer por isso.

PS: este texto é sobre a reapreciação da co-adopção e não visa discutir a medida em si. Sobre isso, escrevi na altura um artigo de opinião no jornal i – onde defendo que o impedimento legal no acesso de casais do mesmo sexo à co-adopção deve ser abolido, “de modo a que todas as candidaturas sejam avaliadas em função dos seus méritos e das suas diferenças (porque, de facto, elas existem). Há casais – do mesmo sexo ou de sexos diferentes – que não reúnem o perfil adequado para dar às crianças as condições de vida que elas merecem, num seio familiar. E há casais que reúnem esse perfil, independentemente da sua composição e orientação sexual.”