Os ingleses gostam de comboios. (Eu também. Ou gostava. Com a proibição de fumar, sou obrigado, em viagens longas, a entrar numa espécie de coma auto-induzido, uma operação que, de resto, consigo executar com alguma facilidade: o poder da mente sobre o corpo, em certos indivíduos de compleição mental excepcional, é, de facto, admirável.) Uma das muitas provas do gosto dos ingleses pelos comboios é o grande número de dvds que o British Film Institute dedicou ao assunto, todos os que vi um prazer de ver. O mais célebre, e o mais maravilhoso, é um documentário realizado em 1936 por Basil Wright e Harry Watt, Night Mail, dedicado ao comboio, o Postal Special, que transportava o correio de Londres até Aberdeen.

Porque é que o documentário é tão excelente? Porque mostra na perfeição os vários pequenos detalhes do engenho humano necessários ao cumprimento de uma aparentemente prosaica função: fazer chegar à Escócia as cartas (“Quinhentos milhões de cartas todos os anos!”) enviadas de Inglaterra. E toda a espécie de trabalhadores, dentro e fora do comboio, que executam as tarefas necessárias para que essa função seja realizada. E as tarefas são muitas. Recolher, em lugares determinados, e com o comboio em andamento, os sacos com cartas depositados em redes (as redes, através do choque com o comboio, desprendem-se dos ganchos que as seguravam e caem para dentro dele). Dividir as cartas que chegam nos sacos em cacifos correspondendo a cada cidade de destino, e, feito isso, colocá-las em sacos que serão, sempre com o comboio em movimento, por um processo inverso ao anterior, capturados por redes em localidades próximas dessas cidades. Entre muitas outras coisas, é claro.

Não é só o prazer muito efectivo em observar o trabalho em conjunto e a eficácia dele, a sua organização, o gesto certo no momento certo, a acção executada no instante necessário. É que, a todo o momento, o que vemos são indivíduos. Indivíduos que se falam uns aos outros. Indivíduos entre os quais presumimos relações, que trocam palavras sobre as suas vidas. Não são precisos grandes diálogos para, naquele trabalho que exige grande coordenação, imaginarmos a individualidade, e aquilo que se costuma chamar a humanidade, de cada um. De facto, esse é até um dos aspectos mais tocantes e estupendamente verídicos do documentário. Aquele trabalho colectivo não anula em nada a individualidade. De outra forma, é claro, o filme perderia grande parte do seu interesse. Por muito bem feito que fosse, confundir-se-ia com os filmes de propaganda dos chamados sistemas totalitários.

De uma certa maneira, o que Night Mail nos dá é uma imagem da sociedade, ou, pelo menos, a imagem de um microcosmos de uma sociedade decente. Há algo que deve ser feito para que a sociedade funcione, e esse trabalho é feito por indivíduos que, sabendo bem fazer esse trabalho, e tendo notoriamente prazer naquilo que fazem, não se confundem com o seu trabalho. Sabemos, pelas imagens e pelos breves diálogos, que têm as suas vidas longe dele. Night Mail mostra-nos simultaneamente o particular, o contextual, o contingente de uma sociedade – aquele trabalho, a Inglaterra de 1936 – e algo de universal: o comum empreendimento humano levado a cabo por indivíduos que permite o benefício das sociedades.

E o documentário não podia acabar melhor. Acaba com um poema de Auden, suponho que lido pelo próprio, acompanhado por música de um muito jovem Benjamin Britten. Não falo da música de Britten, que é de uma formidável adequação às imagens e ao poema. Mas o poema de Auden é um daqueles que mostra melhor a extraordinária inteligência verbal que é um dos traços mais claros da sua poesia. Fala das próprias cartas (Letters of thanks, letters from banks), das pessoas a quem elas são dirigidas (Letters for the rich, letters for the poor / The shop at the corner and the girl next door) e do desejo final da comunicação e do reconhecimento humano (And none will hear the postman’s knock / Without a quickening of the heart, / For who can bear to feel himself forgotten?). Quer dizer: fala também ele da sociedade, e de uma maneira que é o complemento exacto dos relatados trabalhos do Postal Special. O mundo não é o melhor dos mundos, mas há algo de admirável no facto dos seres humanos criarem para si sociedades decentes.

Juro que rever Night Mail nestes dias de debates televisivos para as presidenciais (o que Vasco Pulido Valente escreveu domingo passado no Público diz tudo o que há de essencial a dizer sobre esses tristes espectáculos) me fez muito bem. E tenho a certeza que fará bem a outros. Apesar de tudo, é bom saber que se pode falar, mesmo que indirectamente, da sociedade sem produzir automaticamente delírios que dão vontade de nos tornarmos eremitas. E eremitas daqueles que vão mesmo para muito longe, para lugares onde a voz humana não se arrisca a chegar. Nem o correio.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR