Um cais. Um navio a transbordar. Em terra, mulheres abraçam maridos, filhos choram agarrados aos pais. “Promete que não morres, promete que não morres” e um capitão, desarmado no rigor da sua farda marcial, engasga-se, não sabe o que responder à mulher. Ele morrer não quer, mas o que há-de fazer?

No QG, instalado no palácio do governador, discute-se o plano Sentinela. “Vai ser Aljubarrota”, comenta um alferes a medo perante o olhar severo do general. “Tens de estudar a tua história, filho, aí os portugueses eram 4 vezes menos do que os espanhóis, e com alguma superioridade de armamento graças aos archeiros ingleses”. Fez uma pausa, contemplou o seu estado-maior, os ajudantes-de-campo, e concluiu: “Aqui seremos 15 vezes menos”.

O Índia, um feio navio da marinha mercante atracado no cais de Mormugão, está lotado. Na verdade, está sobrelotado, com mais do dobro da sua capacidade de 387 passageiros. Leva as mulheres e os filhos dos militares. Por volta das 22h de 12 de Dezembro chegam 19 caixas com jóias e prata antiga, penhor dos habitantes do território como caução de empréstimos do BNU. Poucas horas depois, o paquete abandona a costa do Malabar rumo a Oeste, dias a fio entre o Índico e o Mediterrâneo. Vai cheio de angústia o coração de todos: morreram ou sobreviveram os pais, maridos e filhos deixados naquele rincão asiático do velho reino de Goa?

Sem ver as águas mornas da foz do Mandovi, uma criança, acordada pelo ruído das lágrimas da mãe, no beliche de cima do camarote partilhado com outra família, espreita pela pequena janela para o negrume da noite, insciente da História: Goa era dos turcos quando Albuquerque lá desembarcou em 1510, e foi com os muçulmanos de Idalcão, filho de Yusuf Adil Khan, e não contra os hindus, que se bateu – 1600 homens face a um exército 10 vezes superior -, expulsando-os e iniciando um longo domínio de quase 500 anos.

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O Índia já vai longe a caminho de Lisboa. No seu palácio de Idalcão, o general governador recebe das mãos do seu ajudante-de-campo uma mensagem acabada de chegar, um telegrama-rádio com o número 816/A. “Vossa Excelência compreenderá a amargura com que redijo esta mensagem. É-nos impossível prever se a União

Indiana atacará ou não dentro de pouco”. Pergunta ao capitão notícias do inimigo, a resposta é costumeira: nada mudou, mais tropas nas fronteiras, cada vez mais, carros blindados e navios ao largo. Prossegue a leitura, agora em voz alta: “Estamos seguros de que as grandes potências (…) fizeram sentir junto do governo de Nova Delhi (…) a sua reprovação a um ataque militar”. O capitão ri-se e faz um comentário sobre como Nehru se deveria sentir comovido com tal admoestação.

Vassallo não escuta, as palavras bailam-lhe aos ouvidos, escorrem-lhe da boca. “(…) há que esperar o pior (…). Organizar a defesa pela forma que melhor possa fazer realçar o valor dos portugueses (…). É horrível pensar que isso pode significar o sacrifício total, mas recomendo e espero esse sacrifício como única forma de nos mantermos à altura das nossas tradições e prestarmos o  maior serviço ao futuro da Nação. Não prevejo possibilidade de tréguas nem prisioneiros portugueses…”. O capitão solta um impropério e logo se empertiga, desculpando-se: “perdoe-me, meu general, mas ouvi bem, ele escreveu isso, recomendo e espero o sacrifício total?”.

O general suspira e, de um gesto da mão, dispensa o seu ajudante-de-campo. Tem de reflectir, está cansado, já não dorme há… tem de reflectir.

Entretanto, na ilha de Diu o soldado Manuel está inquieto. Os rumores sobre as forças indianas são cada vez mais insistentes e assustadores. Faz a ronda com o 1º cabo António, cruzam o baluarte de S. Jorge, contemplam os fossos que protegem a fortaleza na frente terra e chegam à capela; com vagar, o transmontano diz ao soldado, apontando o memorial aos heróis das batalhas de Diu: “Esta fortaleza já viu pior. Olha aqui o António Silveira e os bravos do cerco de Diu, há 400 anos, quando algumas centenas venceram 19 mil inimigos. No fim restavam 40 de pé”. Agarra na velha espingarda, sopesa-a, e ri-se repetindo: “Nós não estamos pior”.

A política portuguesa para Goa consistia em manter um contingente militar mínimo e retirar equipamentos. Depois da visita de Costa Gomes, parte do contingente fora reforçar Angola, já em guerra contra o levantamento nacionalista. Dos 12 mil com que chegou a contar a Índia, sobravam pouco mais de 3 mil soldados, sem força aérea, navios – para além de um aviso e 2 lanchas -, tanques de guerra ou antiaéreas em condições de disparar. Tão largo seria o clamor da reacção internacional a tão indefesa defesa, pensava o chefe do governo de Portugal, que o pandita Nehru havia de desistir do seu intento. Fechado num espaço diminuto, o ditador português não sentia os ventos da História que há muito tinham mudado: no dia 11 pediu a ajuda do Reino Unido (ao abrigo de um tratado de 1386!…) e recebeu a resposta, naturalmente britânica, de que seria impossível pois a Índia era membro da Commonwealth.

Na véspera da invasão, já depois do episódio dos chouriços relatado por Carlos Azeredo – pedidas balas para as antiaéreas com o nome de código chouriços, o que se recebeu foram mesmo enchidos -, o governador deu uma volta pelos postos de defesa da capital, Pangim. “Vamos ganhar meu general”, diz-lhe um soldado solitário numa posição virada para a praia, agitando uma kopratchek, espingarda do século 19 de carregar tiro a tiro. Vassallo pensa nas automáticas dos indianos, nos carros de combate, nos aviões e interroga-se: como resistir? “Funciona bem a tua arma, filho?”. O jovem, pouco mais de 20 anos e faces rosadas de um filho das beiras, assegura que sim, “mais de metade das balas disparam, meu general”.

Aos primeiros alvores de 18 de Dezembro 1961, pelas fronteiras do designado Estado Português da Índia correm agora as tropas da União Indiana, 50 mil soldados, blindados, aviões a jacto, bombardeiros Camberra, armas automáticas, uma esquadra comandada por um porta-aviões: a vitória é uma questão de horas, pensa Nehru, o pacifista. Afinal, correm contra um exército cercado, sem armas e comunicações, condenado ao suicídio pelo seu chefe. Fácil.

Passaram 53 anos desde esse dia em que o império ultramarino português, último reduto das velhas potências coloniais, começou a cair. Era inevitável, é certo. Mas o colapso não foi imediato nem generalizado. Apesar de um plano estratégico desadequado – congeminado em Lisboa e em permanente mutação -, da enorme dificuldade em comunicar com os centros de comando locais, só depois de 3 dias as hostilidades cessaram. Os próximos de Vassallo  sabiam há muito da sua decisão: resistir, enquanto resistir fizesse sentido. O general sabia que assinava a sua sentença de morte como militar.

E os portugueses, como sempre, lutaram: combateram as fragatas inimigas na barra do Mormugão, perseguiram a força aérea a jacto a partir da lancha Vega atingindo três– antes da destruição total e da morte do tenente Oliveira e Carmo, fardado de gala -, resistiram em Passo Covo, nos limites de Diu, e em Damão durante 36 horas, contra forças mecanizadas indianas muito superiores. Morreram vinte e tal soldados e oficiais portugueses, centenas de indianos. Ter-se-ia repetido Aljubarrota se o regime não tivesse reduzido o contingente em 3 quartos, retirado as antiaéreas, impedido a colocação de aviões e o deslocamento de unidades navais, nomeadamente um submarino? Não sei, nem interessa verdadeiramente.

Prisioneiros durante 6 meses, os militares portugueses estavam proibidos de se evadir. A pátria não os queria. Durante o cativeiro, escreveu um militar em folhas privadas: “ouvíamos a emissora nacional em ondas curtas, e ficávamos tristes com o que diziam de nós, chamando-nos cobardes e comparando-nos com os heroicos soldados de Angola”. O regime decretara-os culpados pela derrota de Goa. Salazar recusou-se a pagar o resgate dos prisioneiros, que na verdade consistia só no preço da viagem de regresso: que a pagassem eles, se quisessem. Foram recebidos em Lisboa com armas e processos por traição e cobardia. Muitos militares viram as suas carreiras interrompidas. A guerra continuou em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau. Aparentemente, a lição de Goa não fora entendida.

Quando hoje pergunto aos mais jovens pelo que se passou nesses idos de 61, nada sabem. Mesmo gerações mais velhas revelam um grande desconhecimento sobre esse episódio maior da nossa História. E contudo, quando nos passar a ressaca dos complexos coloniais e entendermos ter cumprido o nosso tempo e sido fiéis à nossa condição de europeus da extrema ocidental, olhos no mar oceano, entenderemos em simultâneo que vai sendo altura de honrar aqueles de nós que lutaram, que caíram, que foram dignos portugueses. Aqueles de nós que viveram honradamente, construindo as suas vidas com o seu esforço, em todos os lugares remotos onde a geografia foi marcada por mãos, pés e mentes portuguesas.

Se isto é alguma vergonha, então assumo a vergonha. Mas permitam que me orgulhe do que este pequeno povo a que pertenço fez, contra ventos e marés, às vezes contra si próprio e os seus atavismos. Que me orgulhe com gosto, com raiva, com as entranhas e o coração. Porque é que havemos de ter vergonha de ser quem somos? Quem fomos.

(nota: esta crónica foi escrita com recurso à tradição oral, a relatos do que se passou naquela ocasião escutados da boca de quem viveu os acontecimentos, às minhas próprias memórias, a folhas escritas em cativeiro por mim herdadas, e a alguns dos poucos livros escritos sobre o assunto).

Professor de Universidade Católica – Instituto de Estudos Políticos