Começou com a incapacidade de Hillary Clinton em felicitar Donald Trump na noite eleitoral. Prosseguiu com a disseminação (da mentira) de que quem votou em Donald Trump foi a América redneck, desdentada e pouco qualificada. Alastrou-se através da concepção de uma sociedade dividida entre aqueles que votam “bem” e aqueles que votam “mal” – como se a escolha de um representante político não fosse um acto de cidadania livre. Evoluiu com o responsabilizar da Rússia de Putin pela intromissão na campanha eleitoral, conduzindo Trump à vitória. Agravou-se com tomadas de posição de políticos que, desgostando de Trump, contestaram a sua legitimidade – como fez o congressista John Lewis, uma figura histórica da democracia americana e da luta pelos direitos civis. E, por fim, culminou em protestos organizados (e por vezes violentos), onde activistas refutaram o poder legítimo de Trump, contrastando-o com “a verdadeira maioria” que veio à rua. É aqui que estamos: há meio mundo disposto a aceitar quase tudo para tirar Donald Trump da cadeira para a qual foi eleito.
É Trump um factor de instabilidade para a democracia americana e a ordem mundial? Sem dúvida. Mas, do outro lado, o que se ergueu não é menos perigoso. Ostracizar parte da população, empolar manipulações, rejeitar a legitimidade política de quem foi eleito, liderar massas em protesto contra resultados eleitorais. Isto não é uma mera demonstração de mau perder. É, sim, uma contestação às regras, instituições e convenções que definem as repúblicas liberais em que vivemos. E é, em bom rigor, anti-democrático. Toda esta gritaria, alegadamente em nome dos valores democráticos, tem feito pior à democracia do que o próprio Trump.
Vamos ao básico – sustendo a inquietação que suscita termos de dar esse passo atrás. Ao contrário das tiranias, as nossas repúblicas não se definem pelas pessoas que as governam, mas pela aceitação (por parte de todos) das regras de acesso e fiscalização do poder político. Dito de outro modo, a solidez de uma democracia não se avalia só pela forma como se ganha, mede-se sobretudo pela forma graciosa como se perde. Foi esse o alerta que lancei logo na noite das eleições americanas: por mais que não se goste de Trump (e há muito para não gostar), importa reconhecer a sua legitimidade para liderar os EUA. Porque, no acto da concessão de derrota por parte dos adversários, não estão em causa Trump ou Clinton, mas as regras que enquadram o regime – o processo eleitoral, a soberania popular, os freios e contrapesos institucionais. Sim, nessa noite eleitoral, Hillary Clinton não esteve à altura das circunstâncias – como, antes dela, estiveram John McCain ou Al Gore. Mas, pior, é constatar, passados dois meses, que tantos, para contestar Trump, estão disponíveis para questionar o regime que lhes garante as suas liberdades. A maior ameaça à democracia está aí, não em Trump.
Já se sabe que, da direita nacionalista à esquerda revolucionária, encontram-se muitos fãs de Donald Trump. Porque partilham alguns dos seus ideais políticos? Em parte, sim. Mas, no fundamental, para os populistas que celebram o novo presidente americano, o ponto nunca foi Donald Trump em si – as suas ideias, as suas políticas, as suas bandeiras. Interessa-lhes a contestação que ele gera. Encanta-os o enfraquecimento das instituições democráticas, disputadas nas ruas. Agrada-lhes o ambiente de crispação que legitima as críticas populistas e o diagnóstico de fracasso das democracias abertas e liberais. Importa-lhes o entrincheiramento do debate, que dobra as regras institucionais e quebra os consensos sociais estabelecidos. Para eles, quanto pior, melhor. E a campanha já está nas ruas. Numa ponta do mundo, Michael Moore encabeça protestos contra o Colégio Eleitoral e clama em glória que o “verdadeiro poder” está nas ruas. Na outra ponta, Boaventura de Sousa Santos (sempre ele), a propósito de Trump, explica que “a democracia que temos não tem futuro”. Nada de novo – já vimos este filme antes, contra George W. Bush. Hoje, o ódio a Donald Trump é o novo terreno fértil para plantar as velhas ideias anti-liberais, anti-democráticas e anti-capitalistas.
Preparemo-nos, pois, que os anos de Trump serão difíceis. Por causa do óbvio – o próprio Trump, cuja visão proteccionista (na economia), distanciamento para com a União Europeia e dúvidas quanto à relevância da NATO imporão consequências imprevisíveis à Europa (e Portugal). E por causa do menos óbvio – a quantidade de inimigos da liberdade que, apropriando-se dos protestos contra Trump, encontrarão novos militantes para as suas ideias revolucionárias. Já há, felizmente, muita gente a levar os perigos de Trump a sério. Mas ainda há, infelizmente, muito pouca gente acordada para os perigos dos seus inimigos.