Desde o século XIX que ouço dizer mal dos partidos. Mesmo quando começaram a estruturar-se como algo de parecido com o que hoje por aí entendemos (com uma organização permanente, hierarquização interna, direcções eleitas e designações estáveis e consagradas), um processo evolutivo só detectável a partir de meados do século passado, continuaram a ser alvo das acusações que eram dirigidas às facções que historicamente os precederam. O caso esteve longe de ser uma originalidade portuguesa. Ocorreu, com maior ou menor intensidade, em todos os países europeus onde existiam monarquias constitucionais, i.e., organizadas como um regime monárquico semi-parlamentarista. Os “partidos” não eram mencionados na Constituição. Mas aquilo que existia nos primórdios do “constitucionalismo monárquico” em Portugal, uma espécie de famílias políticas associadas a determinados rótulos indicativos de um preferência política que em princípio as diferenciava, já era o indispensável esteio do “sistema representativo”. Estes proto-partidos arcavam com uma merecida fama de facciosos e de açambarcadores de empregos do Estado – praticamente não havia outros -, de mordomias e benesses que o poder dispensa aos que o exercem e a quem o apoia. (Ontem como hoje.)
A intensidade das acusações não diminuiu à medida que os partidos foram atingindo a maturidade, a partir da década de setenta. Pelo contrário, eram acusados de corruptos e mentirosos, e as suas figuras mais eminentes, com os nomes chapados nos jornais, eram apontadas como “ladrões”, uma seita a que os ministros alegadamente pertenciam por inerência. É preciso notar que os recursos então ao dispor do governo eram uma gota de água no oceano das oportunidades que o poder está hoje em dia em condições de oferecer.
A maldição dos partidos, largamente merecida, remonta às suas origens oitocentistas, mas agravou-se na actualidade com a equiparação da Democracia ao Estado de Bem-Estar, que já é mais do que simplesmente o Estado-Providência. O primeiro implica conforto, desafogo, capacidade de consumir para além das necessidades básicas, de que algumas essenciais são de resto asseguradas pelo Estado-Providência. Segurança Social (pensões e reformas), subsídios de vária ordem, do desemprego ao rendimento mínimo, Saúde e sub-sistemas de saúde, Educação e por aí fora, representam uma Despesa Pública que há mais de dez anos já se anunciava muito problemática. A crise internacional, precedida durante o “socratismo” de um esbanjamento de dinheiros públicos sem precedentes, ajudou a criar a situação dramática que todos conhecemos.
O facto é que o Estado-Providência já não satisfaz; é preciso um Estado de Bem-Estar. E é esta insatisfação, esta aspiração que os partidos responsáveis não conseguem transmitir e muito menos podem traduzir em resultados práticos, que está na raiz da sua generalizada condenação e na génese de movimentos inorgânicos e transitórios, fóruns de discussão, associações e novas formas de activismo de toda a ordem que competem com os partidos pela representação popular.
Na sua diversidade, os novos activismos articulam o mesmo discurso populista e utópico, anti-políticos, anti-partidos, anti-governo e anti-sistema, sem com nada mas nada se comprometerem em concreto. Ou então apregoam charlatanices como Pablo Iglesias, que promete 140.000 milhões de euros para um rendimento mínimo a conceder a todos os espanhóis, pobres ou milionários. Dedicam-se, exclusivamente, ao protesto e à agitação. O “Podemos”, que tanto entusiasma os nossos esquerdistas alinhados e desalinhados (já começou a romagem ao santuário de Pablo Iglesias), é um típico exemplo de um movimento-partido que acolhe indiscriminadamente todas as aspirações populares, possíveis e impossíveis – sobretudo as impossíveis -, e autoriza todos os sonhos e devaneios, o que enche as pessoas de alegria por se sentirem representadas – embora sem a sombra de uma solução para os seus problemas, porque os “Podemos” pura e simplesmente a não têm.
Uma extrema-direita racista e xenófoba como a liderada por Marine Le Pen possui ao menos condições técnicas e políticas para governar: um partido estruturado, uma ideologia definida, quadros, programa político e apoio de um eleitorado fiel em crescimento. Não é o caso dos novos movimentos ou movimentos-partidos, que em geral nascem de manifestações ocasionais e passam ou se esvanecem com a mesma facilidade com que se formaram. Fruto de uma mobilização popular momentânea, estão feridos de instabilidade e inconstância, carecem da permanência e disciplina indispensáveis para governar. Remetem para comunitarismos utópicos e insinuam a ressurreição da democracia directa para dispensar a horrível intermediação das instituições e dos partidos, do que a dispensa do Parlamento seria já agora uma consequência lógica.
No princípio do séc. XIX, já Benjamin Constant explicou que a “liberdade dos antigos” era impossível no mundo contemporâneo, onde apenas podia existir a “liberdade dos modernos”: a Atenas do séc. V a.c. não era a França do XIX. Depois, a História demonstrou à saciedade que a democracia directa degenera inevitável e fatalmente na usurpação do poder por uma “vanguarda” que dita a sua vontade à maioria, que nem tem tempo, nem meios, nem qualificação, nem apetência ou paciência para fazer da política uma actividade a tempo inteiro. A democracia directa conduz em linha direita ao despotismo de uma minoria com energia militante, com tempo e meios para açambarcar o poder. Ainda que se sustente na guilhotina.
Mas, no estado actual da vida política, a democracia directa, um sonho funesto, fará o seu caminho até à deslegitimização dos partidos – e, consequentemente, da democracia representativa – se estes não souberem ou forem capazes de existir senão como partidocracia, uma nefasta perversão democrática agravada pela corrupção intolerável a que se chegou. A partidocracia implica, de facto, o silêncio da sociedade civil, exautorada da Cidade. Implica, também, que os partidos se constituem em micro-mundos auto-referenciais, movidos pela competição interna pelo poder e, em demasiados casos, por postos “estratégicos” que confiram a influência que abre caminho aos rendosos negócios privados com que muita gente inexplicavelmente enriquece.
Não se trata de moralismo, mas da moral indispensável à autoridade para governar. A escandalosa promiscuidade entre o Estado, que os partidos ocupam, e o mundo da finança e dos negócios privados, abundantemente comprovada; a corrupção a cada dia descoberta; as fraudes e trafulhices cometidas por altos funcionários do Estado, dão dos partidos, de que muitos agentes ocupam a Administração Pública, a imagem de um mundo devasso onde se albergam e chegam longe os que apenas pensam em enriquecer, em perfeito alheamento da causa pública. Os homens não se tornaram mais corruptos, porque a resistência ao dinheiro requer uma certa heroicidade e a natureza humana não muda.
Acontece que o aumento exponencial do Estado nas últimas décadas, fruto não apenas da ideologia estatista predominante mas igualmente da complexificação da economia e das áreas abrangidas pela sua intervenção (sociais, ecológicas, energéticas, financeiras, etc.), traduziu-se numa multiplicação de ministérios, secretarias de Estado, serviços, departamentos, “observatórios”, institutos e chefias que tornou muito mais extensa a “interface” porosa entre o Estado e o binómio economia/sociedade. Esta circunstância, como não custa a compreender, propagou, num contexto de completa desregulação moral do mundo da finança e dos negócios, as oportunidades de fraude de agentes partidários e altos funcionários da Administração Pública. Amplificada pela mediatização, a onda de escândalos que se sucedem com espantosa regularidade, generaliza a convicção de que os partidos se servem do país em benefício próprio. Em tempo de aperto e carência, os topos de gama revoltam. Não custa a compreender.
Esta revolta soma-se ao desejo frustrado de um Estado de Bem-Estar. É também por aqui que irrompem os “Podemos” grandes e pequeninos que deslegitimam os partidos e, por arrastamento, a própria Democracia. Como a História mostra, os regimes também acabam pelo descrédito e ruína dos partidos. E ainda pelo eclipse de valores tão elementares como a honestidade, a honra e a decência (demonstrados no caso excepcional de Miguel Macedo). O niilismo que alastrou depois da carnificina da Iª. Guerra Mundial abriu caminho aos fascismos de vária ordem que imperaram numa Europa outrora liberal e democrática, mas cujos valores foram cilindrados pela bestialidade de um conflito visto como uma atrocidade irracional. Não é precisa tão grande tragédia para gerar a descrença. Sobram razões para Portugal se sentir desmoralizado. E depois dos partidos, o que virá?