A perspetiva de ter António Costa num próximo governo – tal como pediu sensatamente o Presidente da República – causa-me algumas tremuras. Tenho medo que, chegando a um ministério, Costa trate de contactar os governos todos da UE com diligências para que estes coloquem aqueles a quem chama ‘refugiados políticos’ portugueses (vulgo os emigrantes) a limpar as matas lá nos países deles. E eu, pelo meu lado, temo que a minha sobrinha, uma dessas ‘refugiadas’, a trabalhar num laboratório de investigação londrino, seja afinal obrigada a dedicar-se a profissões sujeitas ao inclemente clima britânico. Outras famílias certamente partilharão estes temores.

Só me acalma momentaneamente a ideia da soberba de Costa, que dificilmente aceitará fazer parte de um governo liderado por esse produto menor da democracia portuguesa (segundo visão socialista) que é o PSD. E há escassos três dias, na noite eleitoral, Costa afirmava que o PSD, tendo o maior número de deputados eleitos, devia formar governo com o CDS (as condições de governabilidade eram outra conversa). Costa é conhecido por mudar de opinião (atividade a que se dedica com excessiva frequência para político de confiança), mas talvez seja coluna vertebral demasiado curvilínea (até para Costa) mudar de ideias em assuntos tão sérios só em três dias, não?

Aparentemente a coluna vertebral de Costa é muito maleável: de domingo para terça-feira passou de ‘o PSD tem mais deputados e deve formar governo’ para ‘vamos negociar seriamente com a esquerda para um governo de esquerda’. Há que entender: a soberba de Costa decidiu que o seu dono será primeiro-ministro, mesmo depois de uma derrota estrondosa, estrepitosa e humilhante. Ora só pode ser primeiro-ministro com uma coligação à esquerda. Quem disse que a palavra de António Costa vale três bolívares venezuelanos?

Estamos, portanto, em cima da fina linha vermelha que distingue uma democracia – que aceita os resultados eleitorais mesmo os que nos desagradam – de um golpe de Estado que impõe a um país um governo da coligação dos partidos que perderam as eleições, com programas eleitorais descabelados que prometem empobrecimento e economia incinerada. A extrema-esquerda está com as garras de fora (e historicamente nunca foi excessivamente escrupulosa no respeito pela vontade das populações), as centrais sindicais também, o PS está com a ideia romântica de finalmente se redimir das acusações de ter posto o socialismo na gaveta. E Costa sacrificará tudo para ser PM, até porque se não for é o seu fim de linha na política.

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Por esta altura o leitor com circuitos neuronais não danificados estará a pensar que o trio PS, BE e PCP fazem lembrar aqueles sonhos surrealistas de que padecia Gregory Peck no filme Spellbound. O pior é que no nosso caso não temos uma psicanalista jeitosa como Ingrid Bergman para curar os devaneios. Só um Presidente da República que – vejam bem onde a lata da direita chegou – pretende usar o seu discernimento para promover um governo estável segundo os critérios que entende bons. Ou seja (e vejam bem outra vez) temos um PR decidido a fazer aquilo para que foi eleito.

Mas eu informo que o leitor não tem razão. Se pensa isto, provavelmente não votou nem no PCP nem no BE nem no PS. E, neste caso, é conveniente saber das várias causas para o comportamento delinquente que levou à vitória da coligação PSD-CDS no domingo, já aventadas por gente sortida de esquerda que sabe.

A primeira razão que levou à derrota do PS é a estupidez dos eleitores. A segunda razão é ainda mais óbvia: os portugueses desconheciam que a coligação PaF era composta por PSD e CDS. A terceira: os eleitores sofrem de síndrome de Estocolmo (e, de novo, não há Ingrid Bergman para curar esta maleita). A quarta: os imigrantes portugueses (que iam votar todos, menos a minha sobrinha, no PS e no Livre) foram impedidos de votar por burocracias maldosas.

Perante isto, devemos reconhecer que bom mesmo era anularmos as eleições de domingo passado, ou, no mínimo, fingirmos que não existiram. Que a coligação, que governou quatro anos sob um memorando de entendimento com a troika duríssimo (e só por acaso negociado pelo PS), afinal não conseguiu mais votos que o (supostamente impoluto nessas coisas da troika) PS e nem o PSD elegeu sozinho mais deputados do que o PS. Nem assumir o óbvio: PSD e CDS a partir de agora – ou com uma governação mais meiga ou empurrados de forma iníqua para a oposição depois de ganharem eleições – só podem subir o número de votos.

Estes atropelos ao passado recente não serão novidade para esta nova frente nacional de esquerda. Têm ilustres precursores. Stalin ia apagando os rivais caídos em desgraça das fotografias. Mao, desde os seus anos nas cavernas de Yan’an, deu instruções aos propagandistas para reescreverem a história consigo sempre no centro. Se virmos bem as coisas pela perspetiva correta – é contarmos só os eleitores certos – António Costa teve muitos mais votos do que PSD e CDS juntos. Foi uma grande vitória. Daquelas que o PCP acumula a cada eleição.