Apesar dos valorosos esforços das claques de futebol e da temível claque do PS, que é, como a outra, digna de extensos estudos sociológicos, impera em Portugal a mais extrema bondade. A piedade vigente manifesta-se antes de mais, como convém, no jornalismo televisivo. Uma pessoa não pode ver um telejornal sem se deparar a todo o momento com uma intensa paixão pelo Bem, que não hesita nunca, quando se trata de exibir bons sentimentos, de recorrer ao literário artifício do lirismo. É impossível não estarmos constantemente a tropeçar nele. O lirismo televisivo voa com facilidade e liberta-nos do fardo da gravidade. É, por assim dizer, a “Praça da Canção” possível do nosso dia-a-dia. Um espírito desprevenido julgaria talvez que se trata de falta de respeito pela objectividade. Os espíritos desprevenidos tendem para o prosaico.

Seria sumamente injusto, no entanto, pôr a culpa toda no jornalismo. Se há oferta é porque há procura. E, tendo em conta a dimensão da oferta, a procura é obviamente de monta. É de supor que algo em nós aspira a encontrar no desembaraço lírico um alimento qualquer para o nosso espírito. Qualquer coisa que nos conforte na intuição da nossa própria bondade. Que, de obscura, a torne clara e nítida. Que lhe dê causas na qual se reveja e que a preencham. Do estado geral do planeta às mais minúsculas aspirações, tudo serve. E tudo é convenientemente servido em abundância.

Não quero ser mal compreendido. Não sou cínico e as várias manifestações de bondade de que os humanos são capazes parecem-me admiráveis. Ao ponto de, como toda a gente, viver com desagrado a lembrança dos muitos momentos em que, ao longo da vida, delas não fui capaz, por pura e simples estupidez ou por outras razões talvez menos confessáveis. O meu problema é outro. É que, além da tal perda de objectividade que o acento excessivo no sentimento fatalmente induz, há algo de vagamente opressivo na permanente campanha pelo Bem que a todo o momento nos rodeia. Se calhar sou, à minha maneira, excessivamente sensível, embora não me pareça: creio que muita gente reage a isto como eu. Muita gente a quem os excessos da sensibilidade demonstrativa cansam, porque tanta mobilização cansa mesmo e tende paradoxalmente a engendrar uma reacção de indiferença com a qual, de tempos a tempos, não sabe bem viver.

Por esta e por outras é que foi com grande alegria que soube do retorno, na SIC Radical, do grande, enormíssimo, Bruno Aleixo. Para quem não o souber, Bruno Aleixo é um personagem em forma de cão criado já há vários anos por João Moreira, João Pombeiro e Pedro Santo (espero não me ter esquecido de ninguém importante). Ele representa o antídoto perfeito para o mal-estar que mencionei antes. Porquê? Porque é magnificamente péssimo. Egoísta até mais não, é por inteiro destituído de super-ego. Não respeitando ninguém, manipula tudo e todos, não por cálculo mas por uma espécie de absoluta convicção da inexistência real de qualquer vontade alheia à sua. Ao mesmo tempo, é um pocinho de preconceitos e rejeita impiedosamente tudo aquilo que se encontra fora do seu conhecimento e do seu interesse. Não se pode falar sequer de maldade: ele está antes do Bem e do Mal, como o inconsciente de Freud.

O que faz com que haja nas suas relações com os outros personagens do programa uma inquietante estranheza. Os seus interesses são os mais triviais que se pode imaginar, mas, dado o seu absoluto desrespeito pelos outros, um desrespeito tão extremo que dele ele é tudo menos consciente, rapidamente os diálogos se tornam delirantes. E, repito, aquilo resulta mesmo inquietante de estranho. A vulgaridade dos seus objectivos acentua até essa estranheza e o génio dos seus autores manifesta-se, entre outras coisas, em terem percebido o potencial desse facto. Retire-se a completa falta de vergonha que ele exibe e encontramos quase a gente do dia-a-dia.

Bruno Aleixo alivia, e muito. Permite perceber algo de profundo que se encontra tiranicamente no fundo de cada um de nós e fá-lo em puro gozo e sem didactismo nenhum. O humor é, como se sabe, das coisas mais difíceis do mundo. É preciso encontrar um assento qualquer de incoincidência com a realidade que mantenha no entanto com ela alguma afinidade misteriosa. Os criadores do Bruno Aleixo descobriram-no. Ao vê-lo, nada se perde em desejo de bondade. Pelo contrário, ganha-se. E, o que é o melhor dos métodos, a rir. Não percam.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR