Antes que o assunto esfrie, talvez valha a pena dizer uma coisa ou duas sobre a história dos cartoons de Maomé que não parecem ter sido convenientemente ditas por ninguém que se pronunciou sobre o assunto e que são importantes para se perceber o que está em jogo. E se isso não foi dito foi porque quase toda a gente se pôs a falar a partir de princípios. Erro, parece-me.

A primeira coisa a dizer é que o humor se justifica a si mesmo, se é bom, sem cláusulas nenhumas. A conversa sobre os “limites” falha completamente o alvo. E isso porque o humor, para ser bom, tem que proceder de uma espécie de distância para consigo mesmo daquele que o faz. Essa distância preserva o humor, qualquer que seja o seu objecto, de todo o comprometimento militante com paixões políticas, nacionais, rácicas, sexuais ou outras. No mau humor, pelo contrário, essas paixões estão lá todas. E a graça perde-se. Não é, note-se, que o humor, mesmo o muito bom, não seja discriminatório. O humor é, mais ou menos patentemente, sempre discriminatório, ou, como com o humor judaico, talvez o mais sublime de todos, auto-discriminatório. Mas, se for bom, esse lado discriminatório anula-se, por assim dizer, a si mesmo e fica apenas o que verdadeiramente importa: a graça. Nenhuma paixão recriminatória sobrevive.

É claro que há uma diferença entre o que é público e o que é privado. Quando falamos com amigos, podemos dizer coisas de uma forma mais desprevenida e sem precauções excessivas, exactamente porque supomos uma compreensão prévia da nossa posição (pode acontecer, é verdade, e acontece várias vezes, que nos enganemos). Em público, é necessária uma maior atenção e uma subtileza suplementar para evitar a confusão entre o que dizemos e nós-mesmos. O tacto precisa de ser mais fino. A quem nunca aconteceu sair-lhe, em conversa privada com amigos, uma pequena grosseria, quando a intenção era simplesmente a de ser um jocoso bom conviva? A mim, pelo menos, aconteceu-me algumas vezes demais, e a coisa deixou-me sempre (quando reparei) um sabor amargo na vaga região da alma. Mas não convém exagerar na auto-mortificação. O único método infalível para não dizer asneiras é, acreditem-me, não abrir aboca. De qualquer maneira, e tirando esta diferença no que diz respeito ao desprevenimento, o princípio é o mesmo nos dois casos, o público e o privado: não nos confundirmos connosco.

Já não leio o Charlie Hebdo há séculos, e não pretendo, por amor aos bons princípios, passar a lê-lo todas as semanas com dedicação escrupulosa. Mas a minha memória e o que vi dele nos últimos tempos, faz-me pensar que os desenhadores tinham aquela qualidade de distanciamento não passional naquilo que faziam (uma diferença abissal que os separa de Dieudonné, onde não há distinção entre a intenção – política, racial, etc. – e o humor tentado). Não perceber esta distância entre Charlie e Dieudonné, como Pacheco Pereira parece não a ter percebido no seu último artigo no Público, só se pode compreender, numa pessoa inteligente, por falta de compreensão, espero que momentânea, do que é o humor. (Deixo de lado um outro aspecto, associado a este mas mais importante, que mereceu uma resposta acertada de Miguel Esteves Cardoso no mesmo Público: a cumplicidade assinalável entre Dieudonné e a violência, inexistente no Charlie.)

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Uma coisa importante nisto tudo é que o humor é uma forma de nos defendermos das coisas que nos ameaçam. Banalmente, hoje em dia, de nos defendermos da progressiva regimentação de tudo e da infantilização a que somos submetidos por um poder tutelar, que confirmam até ao absurdo as previsões de Tocqueville: todas as regrazinhas com que somos mimados regularmente e que visam controlar em detalhe tudo o que fazemos são um óptimo objecto de gozo. Gozar não evita o mal, mas alivia. Menos banalmente, e voltando ao nosso caso, de nos defendermos da violência física e moral do integrismo islâmico. Mesmo levando inteiramente a sério esta última, e combatendo-a pela força e, na medida do possível, pela persuasão, há ainda a necessidade higiénica, para usar uma palavra inventada por Alexandre O’Neill, de ao mesmo tempo a “desimportantizar”. E para isso vale literalmente tudo. Os únicos limites são aqueles, indetermináveis, do talento.

A Igreja, por um movimento próprio e por um movimento que lhe foi comunicado, muitas vezes à força, do exterior, acabou, com reservas que se compreendem, por aceitar o humor que lhe é dirigido. O que o actual Papa disse exprime-o bem, até na ambiguidade que transmitiu ao dizê-lo. Que o tenha feito num dos momentos em que parece, pelo menos aos olhos de um ateu que tem saudades de Bento XVI, improvisar doutrina em público (confesso que nunca imaginei um Papa tecer em entrevista, como Francisco fez há uns tempos, considerações sobre a guerra justa) não é exageradamente importante. A Igreja participa à sua maneira da tradição reflexiva do Ocidente, que em parte ajudou a formar. E é essa tradição reflexiva que permite a distância de si a si que mencionei no princípio, a não confusão de nós mesmos com o que afirmamos. Uma não-confusão que nada tem de má-fé nem indicia relativismo algum e que é antes uma forma de respeito pela verdade.

A situação é radicalmente diferente, para nossa grande infelicidade, com boa parte do Islão actual. Quando vemos celebrações, de Gaza (sim, de Gaza) a Grózni, pelos atentados de Paris, percebemos, mais uma vez, que há algo que corre muito mal. O islamismo, entre outros males, sofre da falta dessa reflexividade que, lenta e penosamente, se tornou um dado da nossa cultura. A piedade e a subtileza que existem no Islão não conduzem por si à reflexividade. Se conduzissem, não víamos o que vemos. E não estávamos na situação em que estamos, que é a de tentar justificar uma coisa que, quando é boa, não requer justificação alguma, e a falar dos limites que temos de nos impor: não temos de nos impor limites nenhuns se houver efectivo talento e reflexividade. O humor não é um acessório brilhante da nossa cultura. Na medida em que reflecte a nossa capacidade de não nos confundirmos com as nossas opiniões, e a desenvolve, ele é uma parte essencial dela. Por isso, defendê-lo não é uma questão de princípios, não voa tão alto em regiões etéreas. É, muito mais fundamentalmente, uma questão de salvarmos a nossa pele.