Carl von Clausewitz, que se distinguiu pelo seu tratado inacabado de teoria militar sobre a guerra (publicado pela primeira vez em 1832), escreveu a célebre frase que já todos ouvimos num ou noutro contexto: “A guerra é a continuação da política por outros meios”. Não, não estou a dizer que começou uma nova guerra. Mas, em apenas uma semana, os Estados Unidos recorreram à força massiva duas vezes e deslocaram meios navais de peso para zonas estratégicas, em forma de ameaça.

Primeiro, chegou-nos a notícia de que 59 mísseis tinham sido disparados contra a base militar de al-Shayrat, na Síria. Dois dias depois, Donald Trump despachou uma “armada” para a Península Coreana encabeçada pelo USS Carl Vinson (um porta aviões), seguida de uma frota de combate.

Não é certo que os navios de guerra lá permaneçam – os EUA consideram que a frota estacionada no Japão é suficientemente forte – mas foi a resposta à aproximação do Dia do Sol na Coreia do Norte e às ameaças de Kim Jong-Un de testar mísseis na parada militar. Já na semana seguinte foi lançada “a mãe de todas as bombas” (a maior bomba convencional do arsenal norte-americano) em Achin, no nordeste do Afeganistão. Um ataque antiterrorista que nunca tinha chegado a fazer manchetes de imprensa se esta bomba não representasse uma nova assertividade no combate à ameaça do Estado Islâmico.

Estas demonstrações de força foram justificadas por razões diferentes: o bombardeamento à base síria foi um ataque punitivo pelo facto de o regime de Assad (com a conivência da Rússia) ter usado armas químicas contra os rebeldes. A deslocação da marinha americana foi uma demonstração preventiva de força. O disparo da M.O.A.B., uma arma que atinge alvos subterrâneos, numa zona remota do Afeganistão, faz parte do combate contra o Daesh e destinava-se à destruição de bases operacionais terroristas, incluindo subterrâneas.

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Estes três eventos em conjunto, num espaço de tempo tão curto, sugerem que a Casa Branca caminha para uma nova tática de política externa, em que a dissuasão militar – a escalada da demonstração da força norte-americana – é o elemento central. Em conjunto, lêem-se como um aviso: os Estados Unidos continuam a ser o país mais poderoso do mundo e estão dispostos a usar a força e tecnologia militar com uma nova firmeza sempre que necessário.

A demonstração da força como elemento dissuasor das intenções do inimigo é tudo menos uma novidade. Aliás, é muitíssimo recorrente e faz parte da história recente dos Estados Unidos, nomeadamente durante a Guerra Fria. O que torna estas últimas semanas tão diferentes são três elementos.

O primeiro é que, desde o colapso da União Soviética, convencemo-nos, no Ocidente, que a força militar tinha novos usos, muito mais legítimos: salvar vidas humanas, evitar a deflagração de conflitos, ou controlar zonas de risco (a intervenção no Iraque, em 2003, foi vista como uma anomalia e não a regra). Esta administração veio mostrar-nos que nada disto está escrito na pedra. A sua visão é que o mundo é perigoso e a única forma de controlar o perigo é mostrar que se está disposto a enfrentá-lo.

O que não é assim tão surpreendente: a história americana pré-Guerra Fria mostra-nos que o isolacionismo (a etiqueta que colámos a Donald Trump devido às suas declarações de campanha e políticas presidenciais) está intimamente ligado como o unilateralismo – o uso cirúrgico, mas decisivo, da força em casos em que os interesses nacionais estão ameaçados. Por conta e risco de Washington. Outros Estados podem ser informados ou consultados, mas a decisão final cabe ao presidente dos EUA. E depois de a casa (leia-se mundo) estar em ordem, regressa-se ao que verdadeiramente interessa a um presidente nacionalista: os assuntos internos.

O segundo elemento é que pelo menos duas destas demonstrações de força implicam Estados que possuem armamento nuclear: a Rússia (intimamente ligada ao regime de Assad) e a Coreia do Norte. E ambos, de forma diferente, são liderados por homens fortes, que não têm hesitado em fazer exatamente o mesmo que os Estados Unidos fizeram recentemente: demonstrar a sua força. Isto coloca um enorme dilema de segurança que até aqui nenhum presidente americano pós-conflito bipolar quis enfrentar. Por razões perfeitamente razoáveis de prudência. A nova administração deu um passo inesperado em frente, e as consequências são imprevisíveis. Não é por acaso que Rex Tillerson, esteve em Moscovo, e que Mike Pence se tem desdobrado em contactos com a China, Japão e Coreia do Sul, enquanto vai mandando recados a Pyongyang sobre o fim da “paciência estratégica” americana.

O que nos leva ao terceiro elemento: está aberta uma caixa de Pandora. O mundo não é feito de atores passivos e a estabilidade e futuro do Médio Oriente (atenção à cimeira Moscovo-Damasco-Teerão), bem como a da Ásia Pacifico (porventura uma das mais tensas zonas do globo) estão em aberto. E isso não pode deixar ninguém descansado. A verdade é que a escalada do uso da força tem um planeamento e um início concreto. Mas tal como nos ensinam os clássicos da teoria política, o desencadear de reações em cenários como este têm um elevado grau de imprevisibilidade. Se a administração americana conseguir avançar na resolução dos problemas será uma vitória diplomática. Mas se qualquer um deles resultar numa escalada de violência, o presidente – e parte do mundo – estará em muito maus lençóis.

Depois de tantas ocorrências do uso dissuasivo da força, é quase impossível não nos lembrarmos de Clausewitz, o general prussiano, mesmo que tenhamos de alterar o seu famoso aforismo. Agora, o uso da força militar (em alvos estrategicamente selecionados) é a continuação da política por outros meios.

Investigadora do IPRI – Instituto Português de Relações Internacionais