Imagine que, entre 2011 e 2015, a maioria parlamentar PSD-CDS havia alterado a Constituição. Que o texto constitucional havia sido expurgado da sua visão estatizante da sociedade. Que se havia reduzido a rigidez da Constituição e flexibilizado as normas sobre a revisão constitucional. Ou que se havia reduzido o elenco de direitos sociais e retirado da Constituição a fixação do seu respectivo financiamento. Dir-me-á o leitor que imaginar tal coisa é um exercício inútil – e é precisamente esse o meu ponto. Não por causa do teor das alterações – estas são plausíveis e foram alvo de proposta formal em 2010 ou objecto de reflexão na iniciativa “Nova Constituição” em 2015. O exercício é inútil porque as revisões à Constituição exigem formalmente um acordo alargado de 2/3 dos deputados na Assembleia da República – dos 230 deputados com assento parlamentar, 154 teriam de votar favoravelmente as alterações. E, em 2011-2015, PSD e CDS somavam juntos 132 deputados. Ou seja, para que uma revisão constitucional acontecesse, teria sido necessário obter a aprovação de partidos à esquerda.

O exemplo serve, por via da proximidade com a nossa realidade nacional, para sublinhar algo que gera consenso nas democracias liberais e que deve servir de base de qualquer discussão política: os regimes têm regras e alterações significativas à organização política de uma sociedade requerem validação reforçada pelos representantes eleitos. Uma república democrática funciona assim. É democrática, porque a fonte do poder político está no povo. E é uma república, porque é essa a forma específica de organização política que fixa as regras, que separa os poderes, que estabelece equilíbrios e contrapesos, que define os procedimentos e a legitimidade política – e que todos os actores políticos aceitam.

É importante ter esta ideia assente quando se olha para a Catalunha, porque o que lá está a acontecer é precisamente o inverso. Um parlamento regional que, através de uma maioria parlamentar inferior a 2/3, quer fabricar unilateralmente um país e impô-lo sobre a população. Um líder político que viola a Constituição do Estado espanhol, que jurou cumprir. Um desrespeito sucessivo das regras republicanas, que teve o seu auge num referendo fraudulento, sem qualquer validade constitucional e que instrumentalizou a urna como arma de legitimação. Um movimento político que força uma posição dramática de ruptura contra a vontade popular – as sondagens indicam que apenas 19% dos catalães não se sentem espanhóis e que só 29% realmente votariam a favor da independência da Catalunha. A intimidação social aos que recusam a agenda independentista. Um clima sufocante de “fake news”, gerado pela propaganda da Generalitat catalã: nas manifestações de 1 de Outubro, afirmou-se a existência de 893 feridos graves, “o pior registo de feridos na Europa desde a II Guerra Mundial”, quando afinal os dados oficiais do Departamento de Saúde da região apenas registam a entrada de quatro feridos em hospitais.

A Catalunha é hoje o campo de batalha onde prossegue a guerra dos nossos tempos – a do ataque ao liberalismo. Por mais ruído que se ouça, é isto que interessa e são esses valores republicanos que estão realmente a ser desafiados. E, claro, são esses valores, reais garantes da liberdade, que devem ser defendidos. Contra a democracia directa, que coloca o ódio identitário como matriz, fragmenta a sociedade e põe todos contra os outros. Contra Trump, Le Pen, os hipócritas do Brexit e Puigdemont. Contra os nacionalismos de direita e os nacionalismos de esquerda. E contra aqueles que, oportunisticamente, apoiam a erosão dos valores liberais em troca de uma vitória para a sua agenda política. Sim, costuma-se dizer que, no combate político, tudo se pinta em tons de cinzento, porque ninguém tem toda a razão do seu lado. E sim, há e tem havido erros políticos de todas as partes nos momentos decisivos – na Catalunha, no Reino Unido, nos EUA, na política europeia. Mas a existência de erros não anula que haja um lado certo – que não é à esquerda ou à direita. Seja onde for, estar do lado certo é estar do lado da república.

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