Os manifestantes de Charlottesville devem ter razão: os negros, os imigrantes, os homossexuais e os judeus não são como nós.
Têm uma cor diferente, uma nacionalidade diferente, uma orientação sexual diferente, uma religião diferente.
Não são como nós. Ou melhor, como eles, que nos passados dias 11 e 12 de Agosto assumiram uma posição clara em defesa da raça superior – a branca. “Vocês não nos vão substituir”, gritaram os manifestantes, referindo-se a todos os não brancos, os que não são como eles, negros, imigrantes, homossexuais, judeus, e a todos os antifascistas que os defendem.
“Black lives matter”? Ao slogan de protesto contra as mortes injustificadas de afro-americanos às mãos da polícia, contrapuseram os manifestantes da Virgínia que “white lives matter more”. Estamos assim.
Muitos analistas, neste Agosto em que tantos estão de férias (talvez por isso haja menos confusão de ideias), consideraram essas acções um sinal da intolerância que cresce nos Estados Unidos; foram prontamente denunciadas pelo Governador do Estado, e também Donald Trump as condenou, embora usando o plural nós, em vez do eu habitual, e sem apontar o dedo aos perpetradores (nazis, alt-right, kkk). E não poderá o dedo ser apontado ao próprio Trump, que nunca verdadeiramente renegou as suas afinidades ideológicas?
Cada vez mais pessoas, em mais países, e Portugal não é excepção, adoptam a retórica da “gente como nós”. Uma sigla, em português, resume o fenómeno: são “gcn”, ou, inversamente, não são como nós.
Então são o quê? Um pouco de tudo: imigrantes. Moradores da margem Sul. Gente de esquerda. Gente de direita, pois a direita, ao contrário do que a esquerda pensa, não tem o exclusivo da intolerância. Novos ricos. O povo em geral, de quem dizem (os “gcn”cistas) que não se sabe comportar e cheira mal. Os de outra religião, com destaque para os povos do Livro comum não-cristãos. Os turistas, já agora…
E, claro, têm razão, toda essa gente não é gcn. Ameaçam-nos os empregos. Abusam do espaço público. Cheiram mal. Encharcam-se em perfume. Ameaçam o nosso estilo de vida (dos ricos). Ameaçam a ascensão social (da classe média). Ameaçam a diminuição das desigualdades. São agiotas, terroristas, e turistas (estes, contra as nossas cidades tradicionais e decadentes). Não são, em definitivo, gcn!
O fenómeno é global. Assenta no crescimento do nativismo, do localismo, do nacionalismo, da ideia de que a ameaça – num Mundo de novo, cada vez mais perturbado e desequilibrado – provém sempre do Outro, seja ele quem for. Desde que não seja da nossa tribo, da nossa região, do nosso país, é uma ameaça. Não é como nós. Deve ser combatido.
Concordo: é altura de apostarmos no que é nosso, nos nossos, nos que são como nós; sim, porque há pelo menos 1 gcn para 10 que não o são. Ou para 100, ou para mil, varia consoante aquilo – as pessoas – de que estivermos a falar. A nossa força é a gcn. Para os americanos de Charlottesville, são os brancos, a extrema-direita, os nazis (de que se reivindicam), cultores do ex-extinto Klu-Klux-Klan; e assumem-se contra quase todos os outros.
Mas para quem “se limita” a opor-se aos imigrantes, sem cuidar da questão racial (que não deixa de fazer parte da equação), são eles, ao roubar os “nossos” empregos, que não são gcn… ou seja, potencialmente uma parte substancial da raça humana. Não interessa que sejam indispensáveis em ocupações que os “nossos” não querem desempenhar, que façam falta na perspectiva demográfica, já para não falar da humanitária. E para quem “se limite” a opor-se a outras religiões, são os milhões que as professam que não são gcn. Milhares de milhões. E o que dizer dos turistas, quer os de pé na chinela, hordas famintas a arremeter pelas nossas calçadas acima, quer os mais abonados, a fazer subir exponencialmente o preço do imobiliário? Responsáveis pela descaracterização dos nossos belos bairros tradicionais com as suas fachadas rachadas – são milhões, mais do que os habitantes de Portugal.
GCN, só queremos gcn! E se para isso for preciso activismo, se para isso for preciso militantismo, se para isso, vá lá, for precisa alguma violência… então que seja.
Há um problema. Pequeno, mas é um problema.
É que a gente como nós é sempre, por definição, minoritária. E se os que não são como nós se voltarem contra quem não é como eles, como nós, e se o fizerem com activismo, militantismo e, vá lá, alguma violência, então corremos um risco. Tal como eles, pois também são minoritários face aos que não são como eles. Enfim, um infindável ciclo de… activismo, militantismo, violência e, já agora, nacionalismo. Onde todos ficam a perder, salvo os defensores da violência, do extremismo, do ódio ao Outro; os de Charlottesville.
Vivemos tempos perigosos, talvez os mais perigosos de sempre. Mas não parece complicado entender que a cultura da rejeição do Outro, e de todos os Outros que não são como nós, origina retribuição, mais ódio, mais violência, mais destruição. A História está repleta de exemplos, não é preciso recuar muito.
Há uma só raça de seres racionais, a humana, a habitar um pequeno e excêntrico planeta. Partilhamos o mesmo património genético, com diferenças mínimas. Somos todos gcn.
PS. Uma amiga que leu este texto antes de ser enviado, apontou-me um erro: quem usa a expressão gcn é porque não é gcn. Pois não é gente como nós quem pretende sê-lo e se arroga o direito de se chamar assim, sem ter qualidades para isso (e quem tem não o apregoa); e são esses que falam de gcn. Vai dar ao mesmo. Somos todos gcn e o resto é preconceito e racismo. Peço desculpa, enganei-me: os nazis de Charlottesville, a chocar o ovo da serpente, não são gcn.