1 – Portugal. Viagem. Mar. Partida. Futuro. Não acho palavras mais adequadas para definir este livro, mas também para nos traduzir quem o escreveu: é que poucas vezes vi confundirem-se com esta felicidade um autor, Guilherme Oliveira Martins, com um livro, “Na Senda de Fernão Mendes- Um Livro de Viagens” (Gradiva). E o livro com quem o escreveu.

Portugal, glória e desdita, orgulho e recusa, partida e chegada, mas sempre Portugal. Porque o autor ama o seu país mas, conhecendo-o como pouquíssimos portugueses, é também por isso que o ama. Hesito aliás na palavra que melhor caracterize esse conhecimento quase amoroso: Íntimo? Profundo? Antigo? Completo? Mas se eu disser “patriótico”, embora a palavra tenha caído em desuso, talvez chegue perto do que afinal une Oliveira Martins ao seu país.

Portugal, portanto. Não há sítio ou canto onde ele não tenha ido, contando-nos o que viu e sobre tudo isso discorrendo com o à-vontade de um íntimo, a invejável segurança de um conhecedor, a pena de um literato.

Mas também partida ao encontro da aventura do Portugal do Atlântico, do Índico, do Pacífico, ocidentes e orientes, a fé e o ouro. Identidade e história, passado e presente.

Com o Centro Nacional de Cultura a que preside – e continuando uma boa ideia da sua antecessora Helena Vaz da Silva – integrado em embaixadas culturais, ou até como ministro, Guilherme de Oliveira Martins foi por esses oceanos e mares. Diz-nos ele: “Só se entende Portugal e os portugueses numa viagem intensa e interminável, de partidas e chegadas, sonhos e regressos. Somos ilha, porto de chegada e cais de partida, praia de sentimentos contraditórios.”

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Viagem, como explicação do que fomos e fizemos. Partida, como explicação de nós.

“Em todo lado pudemos sentir a complexidade e a extensão de um velho Império, onde houve glórias e fumos, encontros e desencontros…” relata-nos Guilherme Oliveira Martins para depois evocar o padre António Vieira, quando falava de “um Império que não é político, mas de dons, de graças e feito de transmissão de cultura e de espírito”.

Chegou, porém, já o tempo do futuro. E melhor que ninguém o autor deste livro o compreendeu ao querer resgatar memórias e heranças do cofre de passados comuns para as projectar num futuro agora feito de muitas pátrias, porque “só os povos antigos podem entender a força das sementes de futuro”.

Diz -nos também Guilherme que “se lermos Fernão Mendes Pinto – nome não por acaso impresso no título desta obra” – facilmente entenderemos “como a viagem é matéria-prima de vida e de literatura, de existência e de pensamento”.

E, digo-lhes eu agora, se lerem Guilherme Oliveira Martins perceberão como isso é verdade, pois é de vida e pensamento que aqui se trata. Por detrás destas páginas reencontramos o leitor de prodigiosa memória, o estudioso, o homem de pensamento, o cidadão de cultura, atrevendo-me eu a juntar a estes traços, o que julgo ter nele há muito detectado: um sentido de observação que nunca é ocioso, uma curiosidade que nunca é de circunstância, uma atenção que nunca se distrai do seu próprio rigor. Um peregrino erudito, em suma – e o que é um erudito senão alguém que viveu muitas vidas e sedimentou tudo – o vivido e a memória, o saber e a viagem, a cultura, o gosto, a curiosidade?

2 – Dizer livro de viagens, remete-nos de imediato para um quadro de antemão pré-conhecido, pois sabemos que se fixará na deambulação e na descoberta, e sim, apesar de me parecer redutora a expressão, há génios no género. Alias é o autor quem nos fala deles, ao rever aqui este género literário para depois se aventurar, ele próprio, por muitas das suas abordagens: a história – a nossa e a de outros povos e pátrias – o pequeno ensaio, a literatura, a geografia, a política, a cultura, recheadas com a evocação dos seus protagonistas. E farta é a galeria dos diferentes vultos, de distintos tempos históricos, que valsam nestas páginas.

Ao ler este livro dei comigo a pensar numa espécie de fresco com muitos quadros. A comparação talvez confunda, mas o modo como Oliveira Martins dá a ver a saga que ele próprio conta, a forma como nos encena, a nós portugueses, em geografias próximas ou evocando-nos nas mais longínquas ou exóticas paragens; a maneira como anima outros cenários e outras gentes, numa sucessão de latitudes e longitudes, raças e credos, grandes feitos ou pequenas histórias, sim, lembrou-me um fresco. Onde se articulam as várias épocas aqui evocadas com a História que as contextualiza; e onde, usando as cores do saber e os tons da memória, o autor nos fixa momentos, descobertas, reencontros, maravilhas. E sempre contando, explicando, interpretando.

Olhe-se o fresco, começando por essa Roma do Oriente que é a belíssima Goa e pelas suas sete colinas por onde Guilherme Oliveira Martins deambulou como se estivesse em casa. Catedrais, conventos, o balcão dos vice-reis, a rua Direita e a da Conceição, palácios, portais manuelinos com armas de Portugal. E Guilherme lembrando o que se dizia da capital do Estado Português da Índia: “Quem viu Goa não precisa de ver Lisboa”.

Mais a sul, Cochim, das mil influências e confluências, onde em 1503 nasceu o primeiro forte português do Índico e em 1524 morreu Vasco Gama. E Mascate e Ormuz e por aí fora, nessa Rota do Índico aberta por Albuquerque, numa epopeia que então parecia não ter fim, nem limite. E ainda Malaca, porto de abrigo, de vital importância e intenso comércio, com a sua porta chamada “A Famosa”, a Igreja de S. Paulo onde rezou S. F. Xavier e o bairro português que acolhe hoje a nossa memória como se fosse no Saldanha: com naturalidade e sem acrimónia.

E há o refinado Japão e as marcas comuns entrelaçadas no tempo: do sino português dos Jesuítas com data impressa de 1577, até ao restaurante Pôr-do-sol – onde os empregados exibem o galo de Barcelos na lapela da farda -, passando pela memória de Wenceslau, unindo uma antiquíssima amizade entre os dois povos.

E há a China e a quase perplexidade que nos provoca a bela crónica aqui escrita pelas surpresas que nos traz do muito que lá foi ocorrendo.

À Indonésia também se rumou, com o embaixador António Pinto da França por guia e – lembro-me agora – como ele gostaria de ter podido ler este livro… E às Molucas e a Timor se foi, onde Ruy Cinatti cantou melancolicamente “os densos verdes e os abismos”. Aqui chegados só apetece repetir a pergunta que a si mesmo o autor formula: como foi possível?

3 – Mas eis que noutra latitude, já estamos a acompanhar a reflexão do viajante em registo apropriadamente ensaístico sobre a experiencia das “Reduções”, criadas pelos Jesuítas no século XVII, na Província do Paraguai; depois, num dos melhores capítulos do livro, a “Ante manhã brasileira”, ouvimo-lo a discorrer com gosto sobre o Brasil, valendo-se entre outros, de Nemésio que também o calcorreou à procura de explicação para o mistério que ele é: um país que permaneceu inteiro e uno com a dimensão de um continente. E a esse formidável “exploit” não seremos totalmente alheios…

Podia alongar -me sobre a peregrinação minuciosa pelo barroco brasileiro de Minas Gerais que deixou o autor extasiado, ou por outras demandas em solo brasileiro e tantas foram; podia lembrar Oliveira Martins “ministro”, em paragens africanas, discutindo com intelectuais cabo-verdianos “a comum língua de várias culturas e pátrias” ou podia ainda “contá-lo” noutras rotas, por mar, ou por terra.

(Podia sim. E certamente o faria com esse inigualável ânimo que vem do também ter eu visto e vivido tanto Portugal tão longe. Em incansáveis viagens por esse vasto mundo, fui e voltei, parti, vi e revi Áfricas e Ásias e Brasis. E longínquas paragens, como a fantasmática e tão longínqua Quiloa, onde vi fortificação portuguesa levantada em 17 dias, a mando do temível Albuquerque; ou remotas ilhas, como a das Flores, na Indonésia, onde ainda hoje misteriosamente se reza em português na Semana Santa. Estive lá numa Páscoa, ouvi-os rezar na minha língua. )

4 – Voltando a Oliveira Martins, há ainda que sublinhar o que neste livro também não é de somenos: quando a saga marítima cede lugar às deambulações literárias e o cronista troca de pele com o literato, o Guilherme das sete partidas fica nas suas sete quintas: está em família com poetas e poemas, escritos e escritores, livros e bibliotecas.

Com Octávio Paz no México, com Borges em Buenos Aires, com Pamuk no Bósforo. Quando se trata da Grécia ou do Mediterrâneo, lá estão Sofia e Kaváfis e a sua “Ítaca”. E quando se trata do Portugal, lá estão, neste cabo da Europa à beira-mar plantado, Ruben, Antero, Lourenço, Teixeira Gomes, Saramago, Pessoa. E bem entendido, Garrett, e as “Viagens da Minha Terra” cuja actualidade é aqui bem dissecada.

E finalmente…. eis o nosso autor em Lisboa, que começou a aprender em menino, com um avô, que o levava pela mão, ensinando-lhe a História através da cidade. Uma Lisboa que ele nos conta com detalhe e delícia, e faz evoluir, num teatro de animado enredo, atardando-se nas figuras de ilustres lisboetas de varias idades e épocas, dos quais nos afirma que “poderiam levantar-se ao entardecer para encetar os diálogos fantásticos da história com as suas sombras.”

Sim, rendi-me ao fresco. E ao saber do Guilherme que é vasto. Mas o que ele sobretudo sabe é usar muito bem o que sabe. É certo que a linhagem e o célebre tio-avô explicam alguma coisa, mas o resto é dom do cronista, sensibilidade do observador, cultura do viajante. E last but not least, a pátria do patriota.

Vão por mim: parem diante deste fresco.

PS: À hora a que entrego este texto, a Madeira está a votar a sucessão de Jardim, trinta e sete (37!) anos após ele ter tomado o leme do PSD/M. Da única vez que foi eleitoralmente confrontado dentro do seu partido, em Novembro de 2012, numas eleições internas, o líder madeirense percebeu que só era metade amado: teve 51% dos votos contra Miguel Albuquerque, então autarca do Funchal, que obteve 49%. Sou incapaz de dizer o que as urnas revelarão daqui a umas horas, mas de uma coisa sou capaz: de dizer que se pode esperar tudo da actuação de Alberto João Jardim, caso Miguel Albuquerque venha hoje – ou no dia 28 – a ganhar o PSD local. Pode e não pode ocorrer, são umas eleições de desfecho imprevisível. A diferença é que para Jardim, Albuquerque não pode ganhar. Ele não deixa. Ponto. Um assunto a seguir obrigatoriamente.