Aquilo que se tem passado nas últimas semanas com o Tribunal Constitucional constitui um caso extremo do pior que há em Portugal no plano institucional, a saber, o sistema judicial. Com efeito, se os engenheiros e os médicos funcionassem como os juízes não havia ponte que não viesse abaixo nem doente que se salvasse. Não se trata apenas de mais um exemplo da pretensa independência e irresponsabilidade do chamado «terceiro poder». O comportamento da maioria dos membros do TC está para além do enviesamento político ou da febre ideológica. O próprio constitucionalista Vital Moreira o sugere. Trata-se, lamentavelmente, do caso mais exacerbado de corporativismo que o país sofre.

A maioria dos juízes do TC – altos funcionários públicos com uma remuneração-base de mais de 6.000€ e com a garantia da correspondente pensão ao cabo dos nove anos de mandato – assumiram-se sem pestanejar como os pretensos defensores das camadas de funcionários e reformados de luxo perante a necessidade imperiosa de cortes na despesa do Estado após a insensata deriva despesista dos governos anteriores. Toda a gente sabe, menos eles, que a redução das despesas do Estado é indispensável.

Ora, isso significa automaticamente diminuir as remunerações dos funcionários, quando não o próprio emprego, e conter rigorosamente as pensões acima de um “plafonamento” proposto oficialmente desde 1997 mas nunca posto em prática. Ao invés, o TC escondeu as suas benesses atrás do funcionalismo, inviabilizando assim as desejáveis poupanças orçamentais, depois de já as ter consentido e deixado de consentir… Esta defesa cega dos interesses da elite estatal não corresponde apenas a um desprezo absoluto pelas necessidades do país.

Em nome desta bizarra concepção de equidade, isto corresponde à ignorância do preço que os assalariados do sector privado têm pago em termos de desemprego e à profunda desigualdade em que se encontra a esmagadora maioria dos pensionistas da segurança social perante os do Estado. Por outras palavras, com estes acórdãos apresentadas num linguajar especioso e enigmático, o TC “constitucionalizou” o emprego estatal, blindando os privilégios da função pública, como se os funcionários descontentes não pudessem procurar trabalho mais bem pago no sector privado!

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Pior do que irresponsável, este corporativismo, que se arrisca a rebentar de vez com as finanças do país, constitui uma clara usurpação de competências. Com efeito, os juízes estão a meter-se onde não são chamados, invocando a santa igualdade a propósito de tudo e de nada, como se as formas de reduzir as despesas estatais não fossem da estrita competência do governo, podendo ser alteradas amanhã por outro governo com idêntica legitimidade eleitoral.

Porém, insatisfeitos com o abuso de competências, ainda querem dar lições de economia política que ninguém lhes pediu. A verdade é que o TC é profissionalmente incompetente para se pronunciar sobre as vantagens e desvantagens económicas de um hipotético aumento de impostos, como pretendeu fazer, especialmente num país cujo aparelho estatal controlava directamente, no tempo de Sócrates, 53% do PIB, fora o que controlava indirectamente através de estabelecimentos para-públicos, favores e corrupção!

A não ser que o mundo onde vivem os juízes seja outro. Talvez eles acariciem o sonho, sem o confessar, de levar o actual governo a demitir-se e, no seguimento de uma retumbante vitória eleitoral do Dr. António Costa à frente de uma esquerda unida contra a ditadura da troika e da Sra. Merkel, que o novo governo devolveria aos funcionários e pensionistas tudo aquilo que o anterior lhes tinha roubado… Temo todavia que mais depressa teríamos de pedir – e pagar – um novo resgate, como aconteceria no dia seguinte à tomada do poder por um pretenso campeão da igualdade como o Syriza, vencedor das últimas eleições europeias na Grécia…

Ou talvez ambicionem mesmo a saída do euro em nome de um soberanismo que, da direita à esquerda, já só está ao alcance de muito poucos. Resta uma hipótese meramente escolar para ver como a justiça funciona em Portugal. Não esqueçamos que este tribunal pretensamente justiceiro é o mesmo que legitimou a trapaça dos deputados que permitiu, contra o óbvio espírito da lei, que os dinossauros das autarquias se candidatassem nas câmaras municipais do lado…

Admitamos então que o TC ignorava a justificada «aclaração» que o governo lhe pediu e imaginemos que o governo mantinha os cortes orçamentais a pretexto de aguardar pela resposta do tribunal… O que aconteceria? Suponho que o tribunal não mandaria a polícia prender o governo mas não deixaria de lhe pôr um processo por incumprimento dos acórdãos do TC… Quanto tempo duraria tal processo? Uma eternidade, seguramente! Recorda-me isto as palavras do insuspeito professor de Direito Pedro Bacelar de Vasconcelos, quando escrevia a propósito da crise da justiça em Portugal: “Da porta da esquadra às grades do cárcere, da mesa do conselho de ministros ao hemiciclo de S. Bento, dos cidadãos cépticos às associações cívicas, tarda o sobressalto que agite este marasmo”!