Uma das notícias nacionais mais peculiares do passado mês de Agosto residiu na censura governamental a dois livros inofensivos de uma empresa privada, a Porto Editora. Os factos são conhecidos e não será necessário voltar a repeti-los. Mas o alcance político e cultural do episódio merece ser revisitado.

Não se trata de um fenómeno estritamente caseiro. Um pouco por todo o mundo ocidental cresce um activismo agressivo contra normas de comportamento espontaneamente adoptadas pela generalidade das pessoas comuns. A “revolução cultural em curso” denuncia essas normas como “opressivas”. E, contra essa alegada “opressão”, advoga a “libertação”: ataca o casamento heterossexual monogâmico, pretende a legalização da eutanásia e sustenta que o aborto deve ser entendido mais ou menos como a extracção de um dente. Agora, ataca também todas as distinções entre os sexos, acusando-as de igualmente opressivas.

Este programa da revolução cultural assenta num paradoxo facilmente observável: em nome de uma alegada liberdade sem entrave, recorre a medidas coercivas para tentar impor às pessoas uma visão do mundo — em rigor, a visão do mundo — que considera politicamente correcta. Este é o paradoxo que ficou particularmente patente no acto de censura aos dois livros inofensivos da Porto Editora.

Acontece que este paradoxo não é novo na história das ideias políticas. É um paradoxo que distingue uma longa tradição de um certo tipo de pensamento autoritário, alegadamente “libertador”. Nos últimos três séculos, ficou particularmente patente em autores como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Karl Marx (1818-1883).

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Rosseau e Marx apresentaram-se como defensores da “verdadeira liberdade”. Só que esta não era a liberdade dos indivíduos concretos, ou das pessoas que conhecemos no dia-a-dia. As pessoas que nós conhecemos (e que nós somos) estão enraizadas em modos de vida realmente existentes — pessoas com uma família, uma profissão, alguma propriedade, eventualmente uma igreja, seguramente uma concepção particular do bem e da vida. Por outras palavras, são pessoas concretas e, por isso, variadas.

Em contrapartida, os indivíduos a que se referiam Rousseau e Marx não são estas pessoas concretas, ou, em rigor, são apenas algumas destas pessoas. São aquelas que têm uma interpretação muito particular da liberdade: as que entendem a liberdade como “libertação” de todos os laços sociais particulares que nos ligam àquilo que nos é familiar.

É por isso que, em bom rigor, esta liberdade como libertação do familiar supõe a ideia de um “Homem Novo” — um homem que, no dizer de Rousseau e Marx, se “libertou” de todos os laços particulares e começou a raciocinar a partir do zero, recusando heranças da experiência vivida pelas gerações anteriores. Era o cidadão da Esparta continental e colectivista imaginado por Rousseau (contra o comerciante da marítima e liberal Atenas); ou o revolucionário profissional imaginado por Marx (contra o “alienado” homem comum realmente existente).

Um dos problemas inerentes a esta visão da liberdade como “libertação” do familiar é bastante simples: a maior parte das pessoas não quer “libertar-se” do que lhes é familiar. As pessoas têm os seus modos de vida — aos quais estão ligadas porque neles se sentem confortáveis, porque estes lhes são familiares e não lhes foram centralmente impostos por ninguém. E esses modos de vida familiares têm as suas concepções do bem que não são as do “Homem Novo”.

É por isso que a construção do “Homem Novo” vai exigir — exigiu sempre que foi tentada — um enorme exercício de engenharia social autoritária, visando redesenhar a partir de cima os modos de vida das pessoas. Rousseau disse claramente que os homens tinham de ser libertados — se necessário, contra a sua própria vontade. Marx advogou para esse efeito a “ditadura do proletariado” — que os seus discípulos fervorosamente ensaiaram.

Esta engenharia social para construir o “Homem Novo” terá sempre — e teve sempre que foi tentada — como alvo principal aquilo a que Edmund Burke (1729-1797) chamou “os pequenos pelotões”: as instituições espontâneas e descentralizadas da sociedade civil, que incluem em primeiro lugar as famílias, a vizinhança, as associações voluntárias, as igrejas, as escolas não centralmente dirigidas pelo estado, as empresas privadas e os mercados não centralmente comandados.

Estas são as instituições espontâneas cuja riqueza e variedade distinguem os países livres. A Magna Carta de 1215 continua a ser uma referência crucial para este ideal de uma sociedade livre — protegida pela lei contra as decisões discricionárias dos poderes de plantão.

As actuais patrulhas politicamente correctas acusam hoje as instituições descentralizadas, e as normas de conduta por elas espontaneamente adoptadas, de serem fundadas no “preconceito”. Ocultam, ou ignoram, no entanto, o preconceito em que se funda a sua campanha “libertadora”: o preconceito contra a liberdade.