Falemos de casa. Ou melhor: falemos de rendas. À primeira vista, pode parecer que voltámos ao “problema da habitação” dos anos 70 e 80. Mas não. A questão é muito diferente. Nos anos 80, o mercado de arrendamento tinha sido destruído e os subúrbios ainda não haviam começado a expandir-se com o crédito bancário. Hoje, casas não faltam. O que faltam são as casas que, de repente, muitos portugueses começaram a desejar: em Lisboa, um andar antigo na Graça, com vista para o Castelo, que pudessem alugar ou vender a turistas.

Em Portugal, o novo “problema da habitação” surgiu como um efeito secundário do dilúvio turístico. A contaminação da margem sul do Mediterrâneo pelo terrorismo, os voos e alojamentos baratos e as novas tecnologias puseram Lisboa e o Porto, mesmo sem os museus de Paris ou os monumentos de Roma, no mapa europeu. É daí que vem a animação das exportações e do investimento. Mas através do turismo, acontece agora em Lisboa o que acontece noutras capitais europeias: a colonização do centro por uma elite cosmopolita, inflaccionando preços e desalojando antigos habitantes.

A propriedade urbana não é apenas uma questão de alojamento. Tal como a propriedade rural no século XIX, está há décadas associada à ascensão social. Quer através da mudança para bairros de prestígio, quer através do enriquecimento derivado da valorização dos imóveis. Na década de 90, as casas foram um grande mealheiro e, por isso, um grande distribuidor de riqueza. Com a crise do crédito depois de 2008, tudo mudou. A troika propôs-se mesmo afastar os portugueses da propriedade, que os endividara, a favor do arrendamento (daí a nova lei de 2012). Mas eis que, seis anos depois, os preços “enlouquecem” nos centros de Lisboa e do Porto e tudo muda outra vez.

Bairros decadentes, onde não havia onde deixar o carro e as tascas eram nojentas, começam a tornar-se interessantes, à medida que as tascas se convertem em imitações de Starbucks, cheias de jovens italianos e de reformados franceses. Muitos casais cujo ideal era um andar novo em Oeiras sonham, agora, com uma velha casa em Alfama.

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O problema não está, portanto, somente na dificuldade, para um lisboeta menos rico do que Madonna, em arranjar casa no Chiado. A transformação do centro e a escalada dos preços estão a ter este outro resultado: dão à classe média a medida do que não vai ganhar desta vez. Ao contrário da década de 90, os salários não sobem, e embora os juros estejam baixos, as condições dos empréstimos são exigentes. A oferta de casas também é limitada, e tende a visar estrangeiros seduzidos pelo regime fiscal. Esta é uma prosperidade muito localizada, e que por isso coincide, paradoxalmente, com uma “desaceleração” do consumo privado.

Tenderá a haver assim, para além daqueles que precisam de casa e não a encontram, uma massa de lesados imaginários, para quem o turismo urbano servirá sobretudo para lembrar o rendimento que não vão obter, ou a vida que não vão poder fazer, com os benefícios fiscais dos estrangeiros, no centro de uma capital finalmente cool. Ou seja, o turismo urbano, ao mesmo tempo que está a gerar crescimento económico, torna patente que este é um crescimento muito mais limitado do que no passado e inspira as decorrentes frustrações.

A oligarquia do regime balança. De um lado, tem o petróleo do turismo, que lhe permite dizer que o país voltou a crescer e está na moda, mesmo sem ter feito as tais “reformas estruturais”; do outro lado, estão os incomodados e os frustrados que não vão ter, como nos anos 90, uma fatia do bolo. Assistiremos por isso, como já sucede no caso do “alojamento local”, a muitas guinadas bruscas numa e noutra direcção. Ponham os cintos de segurança, porque a viagem vai ser agitada.