Gangster. Múmia. Estes são dois dos termos usados nos últimos dias para definir Cavaco Silva. O primeiro por um deputado do PS. O segundo pelo candidato presidencial do PCP. Já Marisa Matias, candidata do Bloco de Esquerda, declarou que quer “abrir as janelas” do Palácio de Belém para deixar sair o cheiro “a bafio”.
Até que Cavaco indigite António Costa iremos em crescendo verbal e a vozearia voltará sempre que o Presidente da República não se limitar a assinar tudo aquilo que lhe colocarem diante. A onda de insultos abater-se-á sobre tudo e todos os que não cumpram o papel de arautos da boa nova da frente que se propõe governar Portugal.
As minhas dúvidas não recaem portanto sobre o que fará esta frente nem como o fará (os procedimentos são sempre os mesmos: invenção de reaccionarismos, criação de uma agenda trepidante de causas tão inúteis quanto ruidosas e perseguições fulanizadas) mas sim sobre como os seus protagonistas se salvarão de si mesmos. Ou seja como e quando terão o seu 25 de Novembro.
Há quarenta anos, estávamos em contagem decrescente para mais um golpe. Militar, obviamente. Este chegou a 25 de Novembro e só terminou três dias depois, a 28, quando os insurrectos de Tancos se renderam. Pelo meio, Lisboa viveu em estado de sítio, com recolher obrigatório, sem espectáculos desportivos nem publicação de jornais e ao ritmo das notas oficiosas emanadas da Presidência da República e do Estado Maior General das Forças Armadas.
O que aconteceu em Novembro de 1975 foi provavelmente uma das operações mais complexas acontecidas em território português: os militares, que podiam não perceber nada de política e muito menos de governação, sabiam muito de estratégia e perceberam que ou eles resolviam a tempo a situação ou acabariam não só a combater entre si como a ter o povo contra si. Assim, o facto que conhecemos como “25 de Novembro” não é tanto um golpe militar (na prática são dois: o dos chamados moderados e outro, da esquerda revolucionária) mas também e muito particularmente o dia em que as Forças Armadas se salvaram a si mesmas e de si mesmas. Salvaram também a esquerda revolucionária, militar e civil, das suas ciclotímicas lutas fratricidas e das forquilhas com que era corrida a norte e é sobretudo o dia em que o PS se tornou a âncora do regime e Soares o seu líder.
Na verdade, entre o que Soares deve a Cunhal conta-se o facto de o PCP ter feito de Soares o homem imprescindível. Entre Abril de 1974 e Novembro de 1975 temos dois Soares: o primeiro serve instrumentalmente Cunhal, seja nos momentos do afastamento de Palma Carlos e de Spínola, seja na questão da descolonização que assina de cruz, enfastiado, desautorizado e irritado por esta não ser o palco por que ambicionava. Poucos ministros dos Negócios Estrangeiros terão tido em Portugal um desempenho tão medíocre quanto Soares em 1974. O segundo, o Soares animal político ou pai da democracia, como agora costuma dizer-se, nasceu quando, no final de 1974, começou a constatar o óbvio: Cunhal ia desembaraçar-se dele. Com Freitas do Amaral transformado num ogre da direita e Sá Carneiro mais o PPD em contraciclo e crise existencial, Soares tornou-se no líder indispensável e apresentável daquele país que além de encher a Alameda em Lisboa incendiava sedes de esquerda a norte. Soares correspondeu-lhes: nenhum líder à direita do PS ousou dizer do PCP o que Soares proferiu no Verão Quente.
O PREC colocou o PS no centro do regime e fez dele o partido do regime. E foi esse regime resultante do 25 de Novembro de 1975 que acabou a 10 de Outubro de 2015 quando, na Assembleia da República, o PS se uniu ao PCP e ao BE não apenas para derrubar o vencedor das eleições mas, o que é muito mais importante, para tirar o eixo do regime do centro e levá-lo para um dos extremos, no caso de esquerda. No mesmo minuto em que o PS votava com o PCP e o BE a queda de Passos Coelho o país passou automaticamente para uma lógica de bipolarização pré-Novembro de 1975.
Dir-se-á que em 2015 não há militares, nem riscos de golpes, nem carros de combate nas ruas, que no país do norte as forquilhas agora decoram museus rurais e se reivindica apenas que as autarquias organizem mais passeios e distribuam gratuitamente aparelhos par medir a tensão, que Eanes é conferencista e Jaime Neves já morreu. É verdade mas estão os mercados em seu lugar. Não são a mesma coisa mas ambos são operacionalmente eficazes a impor aquilo de que precisam: estabilidade e interlocutores políticos. Tal como os militares, para salvarem as Forças Armadas, tiveram em 1975 de fazer um golpe que os levasse de volta aos quartéis, também os mercados precisam em 2015 de interlocutores políticos que governem: Mário Centeno e António Costa não têm feito outra coisa senão garantir que o farão. Contudo mesmo que o façam – e o exemplo de Tsipras não é de descurar – Portugal tem um problema político: o PS mudou de campo mas vai haver um momento algures no futuro em que vai querer voltar ao centro. Não tanto para poder governar mas sobretudo para se salvar a si mesmo.
E é nesse momento que o novo ciclo da política se vai decidir: qual vai ser o novo partido do regime? Qual líder se vai tornar indispensável? Em Novembro de 2016 falamos.