Este foi um ano em cheio para quem é dado aos apocalipses. Desde o princípio do século que estamos à espera que o mundo acabe. Em dezasseis anos, já nos sobressaltámos com quase tudo: vírus (informáticos ou biológicos), atentados terroristas, guerras, e até uma crise financeira. Mas de cada vez que tudo parecia consumado, eis que o mundo teimou em continuar. Nem sequer o euro chegou ao fim, apesar de todos o terem declarado extinto em 2011. E não vale a pena falar do mítico “capitalismo”, que há quase dois século é regularmente enterrado de cinco em cinco anos. O ano de 2016, porém, pareceu promissor para os catastrofistas. Tivemos o Brexit no Reino Unido — a primeira reversão do outrora irreversível processo de integração europeia. E uns meses depois, os americanos elegeram Donald Trump — que os bem-pensantes ainda não decidiram se é Mussolini, Hitler ou Estaline.
O que tornou sensacionais o referendo britânico e a eleição americana não foram, até agora, as suas consequências, mas outra coisa: o facto de não fazerem parte das probabilidades admitidas pelas oligarquias mediáticas. Eram resultados que a ciência e o senso comum, em uníssono, haviam declarado impossíveis. Foram, por isso, recebidos como claros sinais de que desta vez era mesmo o fim do mundo. Aquilo que vimos, porém, ficou aquém das expectativas. Sobre o Brexit, aprendemos que, afinal, ninguém sabia o que era; sobre Trump, que ainda ninguém sabe o que vai ser. Talvez os anúncios do apocalipse tenham sido um pouco prematuros.
O nosso é um mundo em que não é fácil acontecer alguma coisa. Seis meses depois, o Brexit pouco mais é do que o resultado de um referendo. O processo de separação do Reino Unido da UE não começou, e não se sabe ao certo em que termos será concluído. Há procedimentos a cumprir, legislação a rever, acordos para negociar. No princípio do mês, ainda tudo estava encalhado no Supremo Tribunal do Reino Unido, onde juízes e especialistas debatiam com muita erudição qual deva ser, na sequência do referendo, o papel do parlamento.
Nos EUA, houve quem tivesse passado a certidão de óbito à democracia logo na noite da eleição. Trump começou por ser um candidato que ninguém levou a sério, para se tornar um candidato que todos levaram excessivamente a sério. É verdade: foi um candidato anti-sistema. Mas que de outra maneira poderia ter ganho contra Clinton, a candidata do sistema? E agora, como será a sua presidência? As suas nomeações, caso não tivessem sido feitas por ele, teriam provavelmente sido consideradas normais. Seja qual for o presidente que Trump tenciona ser, terá de governar com o congresso e dentro da lei.
Com isto, não estou a dizer que nada acontecerá. Estou a dizer que os regimes ocidentais têm sistemas e recursos para evitar que muita coisa aconteça. Veja-se a União Europeia. Há anos que o BCE usa dinheiro barato para poupar Estados, bancos e empresas à realidade da falência e à necessidade de reformas. O resultado tem sido perverso. Em 2008, explicaram-nos que o capital financeiro erguera um castelo de cartas. Mas como descrever o actual castelo europeu de dívidas e de défices alimentados pelo BCE? Sabemos como o abuso do crédito acabou da última vez. Irá agora acabar de maneira diferente? O BCE está a gerar na Europa uma espécie de subprime político, cuja ruptura, um dia, poderá precipitar a primeira grande viragem do século.
Muita gente nos avisa, com alguma razão, contra os riscos do populismo e do proteccionismo. Mas neste momento, os mecanismos inventados para impedir que alguma coisa aconteça são talvez uma ameaça maior: são eles, ao acumular problemas, que podem verdadeiramente abrir a porta ao proteccionismo e ao populismo. Porque quando alguma coisa tiver de cair, cairá de mais alto.