Em quatro anos como primeiro-ministro, António Costa fez aquilo que um governo do centro-direita jamais poderia fazer em Portugal. Incentivou um ministro a presidir ao Eurogrupo, candidatou esse ministro ao FMI, promoveu operações-stop para caçar dívidas de automobilistas a caminho do trabalho, deixou que um banqueiro do setor privado escolhesse a lei que se lhe iria aplicar na Caixa Geral de Depósitos, implantou a maior carga fiscal de sempre, cativou os serviços públicos como nunca e, em jeito de cereja no topo do bolo, vergou um sindicato com a ajuda das Forças Armadas.

Qualquer governo de uma coligação PSD/CDS que se atrevesse a metade do narrado seria, imediatamente, acusado de corresponder à reencarnação lusitana de um tirano. O país pararia para enfrentar tamanha demonstração de autoritarismo e descaramento.

Fora de brincadeiras, é extraordinário como a complacência mediática permite isto ao Partido Socialista depois de tanto escrutínio ao governo anterior, que estava sob intervenção externa. Mais extraordinário ainda é como, de repente, os senhores do PS passaram a ser críticos das ligações partidárias de dirigentes de classes profissionais ou do timing político de manifestações e protestos, quando se fizeram valer de tudo isso durante a sua legislatura na oposição. Claro que a incoerência faz parte da política, onde o passar do tempo e a alternância democrática a tornam inevitável. Olhemos, então, não para o que aconteceu, mas para o que virá a acontecer.

Nestes últimos quatro anos, António Costa normalizou tudo aquilo que a direita se esforçou por conquistar – o rigor financeiro, o pragmatismo na gestão do Estado, o europeísmo como indispensável (até para o Bloco de Esquerda, imagine-se) –, o que levanta uma questão simples. Se aquilo que separa os partidos de poder é, hoje, cada vez menos visível, o que poderá dizer o PS contra um futuro governo do centro-direita?

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Que “só pensam no défice”, quando será Centeno o primeiro a chegar ao 0%? Que se “ajoelham aos credores”, quando foi o mesmo Centeno a pagar tudo o que faltava pagar ao Fundo Monetário Internacional? Que “não respeitam os direitos dos trabalhadores”, depois do modo como o atual governo destratou os motoristas de matérias perigosas? Que “não querem saber do SNS”, quando hoje uma grávida não sabe onde acabará por parir quando entra num hospital público?

Conjunturalmente, é óbvio que a uniformização do discurso político (mais exportações, mais investimento estrangeiro, menos dívida) favorece os incumbentes. Foi assim que Costa roubou a aparência de responsabilidade aos partidos da direita, o que representa uma enorme mais-valia eleitoral, como o PS bem aprendeu em 2015. A sua resposta às crises dos professores e da energia foram exemplos paradigmáticos dessa perceção. No entanto, seria um erro e uma ingenuidade julgar que a uniformização entre os partidos de poder só afetará a direita.

É uma questão de tempo até ficarmos todos sem nada para dizer – e a política regressar à política.