É importante esclarecer o que se passou com as transferências para paraísos fiscais que só agora foram detectadas. Há ainda muito por explicar, muitas coincidências para perceber. Condenar apenas o Governo anterior não chega.

A esmagadora maioria dos portugueses paga demasiados impostos para se contentar com a explicação de “erro informático”, no caso das transferências para ‘offshores’, que ficaram inexplicavelmente ocultas entre 2012 e 2014. Sim, é verdade que há liberdade para ter contas em paraísos fiscais e é certo que essas transferências não pagam impostos. Mas os rendimentos que geram podem ser tributados e ninguém pode ficar confortável, ao saber que há erros informáticos na administração tributária, com a dimensão do que foi identificado. Mesmo que sejam apenas erros na elaboração de estatísticas. Que cada vez parecem não ser apenas isso.

Esperemos que os partidos que apoiam o Governo não se satisfaçam apenas com a condenação do anterior Executivo, com o argumento de que é de política que se está a tratar, como se ouviu por exemplo Mariana Mortágua dizer no final da audição do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Felizmente não foi esse o registo do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, nem de Eurico Brilhante Dias. Embora o próprio Governo tenha começado mal, com o primeiro-ministro António Costa a ligar este caso à penhora de casas e ao combate aos atrasos no pagamento de impostos por parte do fisco, durante o debate quinzenal de 22 de Fevereiro. Nas declarações no plenário, Costa deixou que os menos informados ficassem com a ideia que se tinham perdido dez mil milhões de euros, quando sabe que não é verdade. Esteve perigosamente perto de um perigoso populismo em geral característico do Bloco de Esquerda.

Vale a pena começar pelo que se passou de acordo com o (ainda pouco) que se sabe. Em Abril de 2016, já com o actual Governo, o secretário de Estados dos Assuntos Fiscais autorizou a publicação das estatísticas do fisco sobre as transferências para paraísos fiscais. Esses dados não eram publicados desde 2011 e foi possível saber o que tinha acontecido entre 2010 e 2014. À luz do que sabemos hoje, esses números já deviam ter feito soar as campainhas: no ano da entrada da troika, de acordo com aquelas estatísticas, tinham saído quase cinco mil milhões de euros, mas em 2014 os movimentos estavam reduzidos a cerca de 400 milhões de euros. Ninguém se perguntou, contudo, porque tinha ocorrido uma queda tão grande. E é mesmo ninguém, porque os dados foram publicados nos jornais, nomeadamente no Público.

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Só em Outubro de 2016, quando o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais é confrontado com os dados de 2015, é que se dá o alerta. De repente Rocha Andrade vê uma série estatística a dizer que em 2014 saíram apenas cerca de 400 milhões de euros – ainda na governação de Passos Coelho – e em 2015, já com o Governo a que pertence, tinham ido para os ‘offshores’ quase nove mil milhões de euros, mais de vinte vezes mais. É nessa altura, em finais de 2016, que Rocha Andrade pede para se verificarem os números de 2014 e o novelo se começa a desenrolar.

Afinal os números estavam todos errados. Ou antes, o valor apurado em 2011 era basicamente o mesmo. Mas a partir daí, em 2012, 2013 e 2014, as diferenças com os dados anteriores são muitos significativas.

Como foi isto possível? A explicação que se tem neste momento é informática, mas sem se dizer que é um erro técnico. De acordo com o que Rocha Andrade explicou aos deputados, terá havido uma falha na importação dos dados do Portal das Finanças para o sistema central do fisco. Esse erro é detectado quando se aplica a nova ferramenta informática que se estava a usar em 2016 para os dados de 2015.

Só que esta explicação informática deixa de ser satisfatória pelo menos por duas razões. Primeiro, porque o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais partilhou com os deputados algumas regularidades estatísticas nos “erros informáticos”. Ou seja, a eliminação de dados parece não ser aleatória. Por exemplo, e nas palavras de Rocha Andrade, no ano de 2014, estavam “ocultas” 97,7% das transferências para o Panamá. Para quem não se recorde, 2014 foi o ano da resolução do BES. Em 2012 e 2013 o “apagão” concentrou-se nas transferências para as Antilhas holandesas. Além disso, quando questionado pelo deputado Eurico Brilhante Dias sobre se os “apagões” estavam concentrados em alguma instituição financeira, Rocha Andrade escusou-se a revelar argumentando com o habitual sigilo bancário.

Em segundo lugar, a ferramenta informática que aparentemente gerou estes erros – e que entretanto foi substituída em 2015 – parece ter deixado de funcionar só a partir de 2012. Em 2011 as diferenças são mínimas e passam a ser enormes de 2012 a 2014, com especial relevo para este último ano.

Com tudo o que se sabe até agora, é de uma enorme irresponsabilidade, mesmo política, resumir o caso do “apagão offshore” à condenação de Paulo Núncio. Restam poucas dúvidas de que o ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais foi, no mínimo, displicente com um assunto que é especialmente sensível, pela fuga fiscal que proporciona. Mesmo sabendo-se que não é propriamente por esta via, quase oficial, que se concretizam as mais graves ilegalidades, qualquer responsável pelo fisco tem de prestar especial atenção a este tema. É uma questão de equilibrar a eficiência com a equidade, como aliás, e de alguma forma, explicou Rocha Andrade na audição parlamentar.

Mas exactamente pelas mesmas razões que justificam criticas a Paulo Núncio, quer António Costa como os partidos que apoiam o Governo devem tratar o caso com rigor técnico, sem caírem na tentação do populismo. Temos o direito de saber o que se passou na administração fiscal para se terem verificado estes erros tão grosseiros na extracção dos dados das transferências para ‘offshores’, mesmo sabendo que isso não vai encher os cofres do Estado.

As regularidades estatísticas podem ser coincidências, porque as há, mas é preciso provar que assim é. Estamos perante um terreno demasiado fértil para os populismos que tão bem sucedidos estão a ser nos Estados Unidos e em alguns países europeus. É melhor não brincar com o fogo.