1. Num governo que é histórico, que se quer histórico e que já entrou para a História por via do aplauso geral da esquerda progressista – o menos que podemos esperar é que promova o retrocesso numa das áreas em que se notou uma mudança forte e consolidada nos últimos quatro anos: a Justiça Penal.

Um dos sentimentos mais terríveis que uma sociedade democrática pode ter é o da impunidade. Perceber que existe uma justiça de ricos e pobres, uma justiça em que o poder económico ou a influência social são essenciais para determinar a inocência de alguém ou uma justiça em que o poder político constrói uma espécie de muro à volta de alguns dos seus intocáveis – só pode levar à constatação de que a democracia portuguesa ainda tem muito por fazer na área da Justiça.

Inquestionavelmente esse sentimento de impunidade diminuiu de forma muito significativa nos últimos quatro anos. Basta recordarmos a investigação do caso Vistos Gold que culminou na semana passada com a acusação ao ex-ministro social-democrata Miguel Macedo e a quatro altos dirigentes da administração pública, o caso BES (com a prisão preventiva de Ricardo Salgado), a condenação com penas pesadas dos principais arguidos do caso Face Oculta (como o ex-ministro socialista Armando Vara), do caso BCP e da ex-ministra socialista Maria Lurdes Rodrigues para chegarmos a essa conclusão.

Mas, acima de tudo, o caso Sócrates provou a mudança de mentalidades que se verificou no mundo judiciário – ao mesmo tempo é um teste sério ao regime democrático.

A detenção ou a investigação de um líder ou ex-líder do poder executivo será sempre um teste à maturidade de qualquer sistema democrático e aos equilíbrios que têm de existir entre poder político e judicial. Aconteceu assim em Itália com as investigações ao socialista Betino Craxi ou ao populista Silvio Berlusconi, foi assim em França com as alegadas irregularidades de Jacques Chirac durante a sua gestão da Câmara de Paris nos anos 90 e verificou-se em Espanha com sucessivas investigações ao governo socialista de Filipe Gonzalez ou agora com os inquéritos ao financiamento do Partido Popular de Mariano Rajoy.

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Numa altura em que José Sócrates faz lembrar Silvio Berlusconi na sua tentativa de promover, entre conferências e almoços, um regresso à política e um levantamento populista das massas militantes contra os malandros dos procuradores e dos polícias que o perseguem desde os anos 90, é importante perceber se, de facto, António Costa aprendeu a lição do caso Casa Pia.

Para tal, bastará ao futuro primeiro-ministro manter a recusa da tese de perseguição política defendida por Sócrates e a doutrina que tem proferido desde a prisão preventiva de José Sócrates (e das inúmeras cartas da prisão): à justiça o que é da justiça, à política o que é da política.

Dar seguimento a essa doutrina, que o próprio José Sócrates apelidou de sinal de fraqueza e cobardia do poder político, será a melhor prova de que como Costa nunca deixará que o ex-primeiro-ministro use o escudo do PS para se proteger da ação da Justiça. Confundir Sócrates, e o seu património financeiro cuja a origem estão sob escrutínio judicial, com um partido histórico da democracia portuguesa como o PS poderá ser um erro tão trágico como um final inesperado dos acordos com a extrema-esquerda.

2. As decisões da Justiça acima citadas, tomadas em pleno processo de redução brutal dos rendimentos dos portugueses por via do terceiro resgate a que Portugal se sujeitou desde o 25 de Abril, assim como uma cooperação mais eficaz entre o Ministério Público (MP) e os reguladores da banca e dos mercados nos casos BPN, BCP, BPP e BES, comprovam que a influência do poder político e económico sobre o poder judicial perdeu força nos últimos quatro anos.

É esta herança de maior liberdade de ação do poder judicial, que deve ser creditada à ação da ex-ministra Paula Teixeira da Cruz, que António Costa vai ter de gerir. Sabendo as magistraturas que existe um sector do PS que está desejoso de ajustar contas com a Justiça (ou de “partir-lhe a espinha”, parafraseando o desembargador Ricardo Cardoso) por causa do caso Sócrates, numa clara sensação de deja vu do pós-caso Casa Pia, é fundamental que o novo primeiro-ministro dê sinais claros de que o seu governo não pretende coartar a liberdade dos tribunais, do MP e da Polícia Judiciária (PJ).

António Costa começou bem ao indicar uma procuradora-geral adjunta conceituada como é Francisca Van Dunem – em detrimento da hipótese de João Tiago Silveira. Esta nomeação representa, sem sombra de dúvidas, um sinal de confiança do futuro primeiro-ministro na magistratura do MP e é um primeiro indício de que o caminho seguido até aqui será mantido. Contudo, e tendo em conta o passado recente socialista nesta área, terá de ser confirmado nestes primeiros tempos do novo Executivo do PS.

Desde logo com o programa do governo, onde poderemos perceber se António Costa e Francisca Van Dunem vão avançar para a 41.º alteração do Código Penal desde 1995 e a 30.º alteração do Código de Processo Penal desde 1987. Resistir a reformas penais como aquela que aconteceu na governo Sócrates após o caso Casa Pia, será um sinal importante de que não haverá nenhuma reversão neste sentimento de liberdade da justiça. Sinal que poderá ser reforçado com a manutenção da direção nacional da PJ, liderada de forma exemplar por Almeida Rodrigues. A saída de Joana Marques Vidal da Procuradoria-Geral da República não é um assunto em discussão por estarmos a meio do seu mandato de seis anos – nem ser essa a prática seguida pelo poder político com anteriores procuradores-gerais.

O peso e a presença que o poder politico tem no auto governo das magistraturas será igualmente uma área fundamental para percebermos o posicionamento do governo Costa. Se até 1997 os juízes e os procuradores tinham uma presença maioritária nos conselhos superiores das magistraturas com poderes de gestão e disciplinar, desde essa altura que os representantes do poder político e do poder judicial estão em igualdade numérica. Alterar esse equilíbrio em favor do poder executivo e legislativo é uma tentação que boa parte do PS, PSD e CDS têm e que pode significar uma alteração profunda na relação de forças entre os três poderes. Veremos se António Costa conseguirá resistir.

3. Francisca Van Dunem não tem uma tarefa fácil pela frente. Além de ter de aplicar o “choque de gestão” preconizado pelo programa eleitoral do PS numa área que tem uma clara falta de conhecimento de gestão financeira e de recursos humanos, Van Dunem será confrontada com um sector que conheceu amplas reformas legislativas – de que o novo mapa judiciário é o maior exemplo. Voltar a mudar tudo ou quase tudo será repetir os erros que costumam ser apontados a outras áreas, como a Educação. A estabilidade legislativa é fundamental para podermos analisar as consequências (positivas ou negativas) das reformas realizadas, sem por em causa as ideias próprias do PS para o setor. Algumas delas iniciaram-se no mandato de António Costa como ministro da Justiça, foram seguidas por Alberto Costa no governo Sócrates e poderão ser concluídas por Francisca Van Dunem. A aposta na informatização da Justiça é um bom exemplo desse património socialista.

4. Não deixa de ser igualmente relevante a escolha de uma cidadã luso-angolana para a pasta de Justiça. Desde logo, pela tradicional relação díficil entre o PS e o MPLA que remonta aos tempos em que Mário Soares apoiava a UNITA de Jonas Savimbi. José Sócrates aplicou-se a fundo, e com sucesso, em manter uma boa relação com o regime de José Eduardo Santos mas perdura a desconfiança entre os dois partidos.

Ao escolher Francisca Van Dunem para uma pasta onde os conflitos entre Portugal e Angola têm sido muito intensos nos últimos anos, será interessante acompanhar a forma como a nova ministra da Justiça vai gerir as relações com aquele que também é o seu país. Seja pela má memória que a própria procuradora-geral adjunta tem do regime angolano (o seu irmão e a sua cunhada foram assassinados durante uma purga interna no MPLA a 27 de maio de 1977), como também pela forma como diversos processos judiciais que estão a correr em Portugal têm intersecções profundas com Angola.

Uma coisa é certa: essa tensão, de que a ameaça de corte de José Eduardo dos Santos no investimento angolano em Portugal foi o maior exemplo, não vai desaparecer. Pode mesmo agravar-se por duas razões:

– Vai ter de existir um inevitável reequílibrio de forças nas relações entre Portugal e Angola. Não só porque a economia angolana está a perder força mas essencialmente porque a influência do poder angolano na economia nacional é desproporcional. A Justiça poderá um dos palcos desse reequilibrio.

– A sucessão de José Eduardo dos Santos. Tal como já aconteceu no passado com o envio de queixas da Procuradoria-Geral de Angola para Portugal contra empresários angolanos caídos em desgraça por razões internas, também a sucessão de Eduardo dos Santos poderá passar pelo palco da Justiça.

Como se vê, também por aqui o governo de António Costa poderá ser histórico.