Ou muito nos enganamos ou a «esquerda unida» está em marcha. Para uns, aqui mesmo no Observador, esta foi a única maneira que António Costa encontrou para transformar uma derrota em vitória; para outros, como eu próprio, trata-se de algo mais profundo. Estamos perante o resultado previsível de quatro anos de negação absoluta das responsabilidades gigantescas que o PS teve na bancarrota do Estado e na intervenção da «troika» em Portugal, na sequência das políticas despesistas e clientelares que já vinham do passado. O PS nunca admitiu até hoje a menor responsabilidade na cura de austeridade que o país tem estado a atravessar e que António Costa e os seus parceiros da «esquerda» garantem ter terminado com o governo que ameaçam constituir. A ver vamos!
Todas as dificuldades que o país atravessou até aqui são, segundo o PS, da exclusiva responsabilidade – para não dizer da vontade – da coligação PSD+CDS formada após a demissão de Sócrates perante o clamoroso fracasso das suas medidas desencontradas, tanto antes como durante a crise, no mínimo desde 2007 a 2011. E mais: todas as dificuldades que o governo da esquerda unida – e o país, na sequência disso – irão ter daqui até à previsível queda dessa união serão, por sua vez, da exclusiva responsabilidade do estado de ruína em que, segundo o trio da esquerda, a Coligação teria deixado o país ao cabo da sua nefasta governação. Estou simplesmente a antecipar a linguagem que o trio passará a usar se e quando tomar o poder. Esta retórica socratista – ao mesmo tempo, impudente mas afirmativa até ao insulto – é tanto mais importante quanto é ela, exclusivamente, que sustenta o trio: não se trata de valores nem de crenças, mas tão só de repetir até à exaustão os mesmos slogans até acreditar neles ou algo de parecido.
Da parte do velho PCP e do nóvel BE, ainda podemos conceber que eles acreditam – no mesmo sentido em que os peregrinos de Fátima crêem em promessas – nas palavras que proferem de acordo com os respectivos breviários. Já o PS, por favor, não nos faça chorar de riso. Se a Coligação que governou até agora aproveitou legitimamente as condições impostas pela crise para exercer o poder político, o PS pretende agora – nada mais, nada menos – do que «acabar com a austeridade», deixando de cumprir as medidas a que o país continua a estar obrigado, enquanto membro da UE e da Zona Euro, quando sabe de antemão que não poderá fazê-lo; tudo isso para aceder ao poder. São comportamentos diametralmente opostos!
Não só não há sombra de oportunidade para o PS e os seus parceiros «acabarem com a austeridade», como qualquer programa viável do PS pode ser acomodado com o PSD e o CDS, com os quais aliás já esteve aliado no passado por muito menos. Só que, desta vez, caberia ao PS o segundo lugar e não o primeiro, como das vezes anteriores, e pior do que tudo teria de dobrar a língua em relação às acusações contra a Coligação e contra o próprio conceito de «bloco central»!
Faz mais de três semanas que aqui anunciei – dia 20 de Setembro passado – que «vinha aí a ‘frente popular’». Para quem escutasse com atenção os ruídos de fundo e tivesse presente a memória política portuguesa, os sinais eram inconfundíveis. Antes de publicar aquele texto ainda pus um ponto de interrogação no título a fim de cobrir a retaguarda, mas a verdade é que o artigo foi escrito no dia anterior sem o ponto de interrogação… Aliás, um leitor assíduo comentou na altura que também ele já se havia apercebido da manobra. Teremos sido dos primeiros a dar-nos conta do que se estava a passar. Engana-se Vital Moreira, portanto, quando escreve que António Costa só pensou nisso na noite dos resultados eleitorais. Muito antes, já lhe era fácil fazer a antecipação aritmética daquilo que as sondagens deixavam prever.
Só que o raciocínio dele e da sua entourage no PS era inédito em Portugal desde 1976 e as suas consequências políticas são imprevisíveis. E não se vê como serão parados. A grande maioria dos membros do PS ficará demasiado feliz com a tomada do poder para pensar na companhia de que se rodeou e quem discordar passará a ser de «direita». Resta saber o que fará o Presidente da República do sarilho que arranjou quando esqueceu o bom hábito de chamar todos os partidos a Belém a fim de ponderarem os resultados das eleições e, em vez disso, enviou a Coligação, porventura ainda inebriada com a sua surpreendente vitória eleitoral, despachar uma missão que devia ter adivinhado ser impossível. O drama é que não há nem nunca houve espaço para qualquer conversação com o PS gerado por Sócrates e, hoje que este aguarda julgamento, muito menos.
Com efeito, não sei que argumentos constitucionais o PR invocará para se opor ao ódio dos inimigos que derrotou cinco vezes durante vinte anos – metade do tempo da nossa democracia eleitoral. É de suspeitar, em contrapartida, que a primeira grande derrota eleitoral da «esquerda unida» serão as presidenciais de Janeiro de 2016. Depois, caberá ao novo PR a missão de poupar o país aos danos que já se terão começado a sentir dissolvendo o parlamento após o prazo legal de seis meses.