I. De repente o país descobriu as taxas. Quem aqui chegasse esta semana e assistisse à polémica em torno da intenção por parte da CML de cobrar uma taxa de turismo em Lisboa acreditaria que em Portugal a cobrança de taxas é uma prática rara.

Vão desculpar-me mas o país está parvo. Ou melhor dizendo o país continua a sofrer do síndrome dos Madureiras e dos Fonsecas que hoje poucos sabem quem são porque no nosso contínuo desatino damo-nos ao luxo de desprezar uma das maiores obras da literatura mundial – a Peregrinação. Mas quem leu (quem não leu ainda vai a tempo) a narrativa de Fernão Mendes Pinto não esquece aqueles desgraçados portugueses que em meados do século XVI, enfiados nas profundezas de uma prisão da China e tendo a sua vida mais ou menos por um fio, não descobriram melhor ocupação do que, sob o olhar atónito dos seus carcereiros, travar entre si uma violentíssima discussão sobre a relevante questão de quem “tinha melhor moradia na casa de el-rei nosso Senhor, se os Madureiras se os Fonsecas”.

Está um português no século XVI à beira da morte na China e de que se lembra? De discutir quem tinha mais influência na corte. Está um português no século XXI a viver em perfeita ditadura fiscal, com as taxas a tornarem-lhe inacessível o acesso a serviços inalienáveis do Estado como a Justiça (na verdade existe em Portugal uma Justiça para ricos – os que podem pagar as custas da Justiça – e uma Justiça para pobres – os que beneficiam das isenções porque para os outros a Justiça é inacessível), com a qualidade de contribuinte a sobrepor-se à de cidadão, rodeado de taxas por todos os lados, e o que faz? Engalfinha-se por causa de uma taxa de turismo.

Enfim, não é que seja de louvar mais uma taxa e muito menos quando se anuncia que a dita há-de servir para custear, entre outras coisas a transformação do Pavilhão dos Desportos num centro de congressos (já lá iremos) mas convenhamos que cabe perguntar: alguma vez leram os regulamentos municipais sobre taxas? Certamente que não porque se o tivessem feito constatariam que a taxa de turismo até é do mais inócuo que esses monstros vorazes de receita que são os serviços municipais já inventaram.

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Em primeiro lugar há que ter em conta o seguinte: municipalmente falando o conceito de legalidade decorre quase exclusivamente do pagamento da respectiva taxa. Por exemplo, fazer ruído é mau. Mas se se pagar a respectiva Taxa de Licença Especial de Ruído e o chamado Valor do Desincentivo pode carregar-se violentamente nos decibéis.

Em seguida convém não esquecer que todas as actividades ou mesmo gestos são passíveis de ser taxados. Veja-se o caso de tudo o que rodeia a morte. Não bastando já todas as taxas que caem sobre os cadáveres, ossadas, urnas, pedras tumulares e afins ainda temos as taxas sobre as jarras e placas que se colocam sobre as campas naturalmente também elas previamente taxadas. Se o leitor está a interrogar-se sobre o que terão os serviços municipais a ver com o gesto de colocarmos uma jarra ou uma fotografia em cima de uma campa guarde a curiosidade para depois porque no acompanhamento que o fisco se obstina em fazer ao que de nós sobra após a breve passagem por este mundo não há, creio até prova em contrário, dogma fiscal superior ao regulamento de taxas de Odivelas. No cemitério de Odivelas colocar uma cruz numa campa é taxado a 3,99 euros. Até aí e aparte fixação em acabar os preços em 99 cêntimos como se estivéssemos num supermercado nada de diverso das taxas cobradas noutros municípios mas eis que somos informados que  se a cruz tiver Cristo a taxa sobe para 8,95 euros. O que terá levado o município de Odivelas a distinguir fiscalmente a figura de Cristo na cruz? E fazendo-o ter optado pela quantia de 4,96 euros?

Eu sei que actualmente os cristãos andam às voltas com as revelações sobre o casamento de Cristo, matéria (o casamento) que aos católicos traz inquietações acrescidas por causa dos gays e dos padres (nunca percebi porque ninguém se preocupa com o casamento das freiras!) mas este tratamento fiscal diferenciado em 4,96 euros para cruzes com Cristo e sem Cristo não é um mistério menor!

A terceira evidência resultante da leitura dos regulamentos municipais sobre taxas diz-nos que se num município uma determinada actividade tem sucesso então ela é imediatamente alvo de uma tributação agravada, sendo que a técnica para aumentar as taxas passa geralmente por fragmentá-las. Por exemplo, vários municípios têm taxas para o que designam como trens puxados por cavalos: paga-se um tanto por ano e pronto. Mas em Sintra, onde tal actividade deve ter relativa procura, logo o regulamento de taxas se desdobrou, como dirá o ministro Pires de Lima, em taxas e taxinhas: temos a vistoria anual à carruagem 61,70; a vistoria anual aos cavalos 33,60; a emissão de alvará inicial de licença de exploração 252,20; a chapa de matrícula 11,80; a autenticação da Tabela de Preços 5,60 e a autenticação de bilhetes (cada 100) 5,60. Não é de admirar que dentro de alguns anos tenhamos a taxa de crina longa ou média ou por cavalo malhado.

A outra forma de aumentar as taxas é associá-las a outros serviços. Por exemplo quando se incluíram as antigas taxas de esgotos nas facturas da água não só se aumentaram muitíssimos os valores cobrados – caso de Sintra – como por exemplo no município da Amadora para um consumo 0 (zero) de água se paga mensalmente em taxas 12,85 euros. A saber: Taxa de Gestão de Resíduos; Taxa de Gestão de Resíduos Fixa; Tratamento Águas Residuais Variável; Tratamento Águas Residuais Fixa; TRH Saneamento; TRH Água; Quota Disponibilidade Saneamento; Quota Disponibilidade Água.

A capacidade de tornar complexa a mais prosaica actividade é outro dos tópicos obrigatórios destes regulamentos: por exemplo, se algum dia de mal com a vida ponderou largar tudo e ir arrumar automóveis desde já desaconselho que o faça em Beja. Nessa cidade, à semelhança do que sucede noutras terras, para se poder ser arrumador de automóveis tem de se pagar a licença de arrumador de automóveis (em Beja são 38 euros). Para obter a dita licença tem de apresentar uma “Declaração médica que ateste a robustez física e o perfil psicológico para o exercício das funções, emitida por um médico do trabalho” e (aqui começa a originalidade de Beja) terá de juntar uma “Declaração de que não se encontra em efectividade de serviço, de qualquer força militar ou serviços de segurança” (será que no Alentejo os militares e os polícias quando despem a farda vão arrumar carros?) e cereja no topo do bolo um curriculum vitae. Aliás nem se percebe como alguém chega a arrumador de automóveis sem que os serviços municipais apreciem os respectivos curricula.

Sendo que em Beja, apesar da exigência do curriculum vitae e daquela necessidade de regular a concorrência desleal que eventualmente os militares e agentes de segurança da velha Pax Julia fazem aos arrumadores de automóveis, ainda não se pede como sucede em Ovar, aos arrumadores que façam um seguro. Aqui chegados, com os candidatos a arrumador munidos das licenças, curricula, seguros e salvaguardada a concorrência desleal das forças de segurança eis que os mesmos regulamentos municipais estipulam que “O arrumador de automóveis está proibido de solicitar qualquer pagamento como contrapartida da sua atividade”; “O arrumador de automóveis está proibido de importunar os automobilistas designadamente, oferecendo artigos para venda ou prestação de serviços não solicitados como a lavagem de automóveis estacionados”.

Proibido de solicitar, proibido de importunar, com a despesa do seguro mais a despesa da licença sem esquecer as declarações de robustez e a redacção do curriculum vitae, o que resta ao arrumador segundo os regulamentos municipais? “O arrumador de automóveis pode aceitar as contribuições voluntárias com que os automobilistas, espontaneamente, o desejem gratificar”. Fantástico, não é?

O problema não é mais uma ou menos uma taxa mas sim que nunca haverá taxas suficientes para a voracidade fiscal dos municípios.

II. No meio da discussão sobre a taxa de turismo ficou a saber-se que a CML pretende aplicar parte das verbas obtidas com a Taxa Municipal Turística na “construção de um novo centro de congressos com maior capacidade de atração do que a Feira Internacional de Lisboa (FIL) e que se deverá situar onde é hoje o Pavilhão Carlos Lopes, no Parque Eduardo VII.”

Este é o outro lado da desmesura dos Fonsecas e Madureiras. Não há dinheiro? Anuncia-se mais uma obra. Inútil. Desmesurada. Cara. Senão vejamos: o actual centro de congressos fica em frente ao Tejo, numa zona privilegiada de Lisboa e pode facilmente expandir-se. Logo construir um centro de congressos no Parque Eduardo VII pode dar particular gosto às empresas construtoras mas não ao bolso dos munícipes. Digamos que o processo de construção de um centro de congressos no Parque Eduardo VII replica o do novo edifício do Museu dos Coches: existia um edifício que servia perfeitamente mas por razões que a razão desconhece resolveu construir-se um novo. E agora arcamos com as despesas do antigo edifício e do novo.

A este desbarato junta-se que Lisboa tem vivido nos últimos anos uma espécie de saga de edifícios tão prioritários quanto imaginários: o Pavilhão dos Desportos, que agora está destinado a Centro de Congressos, foi transformado, em 2008, no Museu do Desporto. No papel, claro, mas municipalmente falando, mesmo sem se sair do papel, tudo custa muito dinheiro. Ponham-se olhos, imaginariamente falando, num outro edifício dito prioritário para a cidade e para o país: o centro de cultura e arte africanas Africa.cont de seu nome. Anunciado em 2009, com pompa e circunstância, custou ao município lisboeta 570 mil euros sem nunca ter passado da fase do risco. Entretanto no Oriente o Pavilhão de Portugal continua à espera de destino e em Belém aguarda-se que abra finalmente o novo edifício do Museu dos Coches.

Agora não nas prisões da China mas sim em Portugal nas tesourarias da fazenda pública os criados dos Fonsecas e dos Madureiras que continuamos a ser discutem entre si para provar quem tem “melhor moradia na casa de el-rei nosso Senhor”.