Há uma passagem de A teoria dos sentimentos morais, de Adam Smith, que dá verdadeiramente vontade de pensar a partir dela. Adam Smith nota que para alguém que, desde o seu nascimento, tivesse vivido em perfeito e absoluto isolamento de qualquer forma de sociedade, os objectos das suas paixões (hoje em dia, dir-se-ia: emoções), os corpos exteriores que lhe dessem prazer ou o ferissem ocupariam toda a sua atenção. As paixões propriamente ditas, os desejos ou as aversões, as alegrias ou as tristezas que esses objectos excitariam, dificilmente poderiam ser objecto dos seus pensamentos. A ideia delas nunca o poderia interessar ao ponto de chamar a sua atenção.
A ideia não é, é claro, inteiramente nova, mas o século XVIII, que se ocupou talvez mais do que qualquer outro com a reflexão sobre a sociabilidade dos seres humanos, permitiu a Adam Smith exprimi-la de uma forma particularmente feliz. Se se quiser uma ilustração quase caricatural da tese, basta pensar na história de Tarzan e de Jane. Jane inspirou, sem dúvida, segundo a lenda, sentimentos muito elevados a Tarzan. Mas é um bom bocado difícil imaginar Tarzan, sozinho depois do primeiro encontro, confortavelmente instalado no galho de uma árvore e fumando sonhadoramente um cigarro, enquanto à sua volta leões rugiam e os restantes animais da selva emitiam os ruídos que lhes compete emitir, pensar para si mesmo algo como: “Jane, estou loucamente apaixonado por ti”.
A vida em sociedade permite-nos indiscutivelmente estes pequenos prazeres desconhecidos de Tarzan. E não existe, é claro, vida em sociedade sem uma partilha de paixões (medos, alegrias, e por aí adiante) entre os seus membros, paixões essas que variam nos seus modos de sociedade para sociedade, às vezes variando tanto que há quase uma radical incompatibilidade entre uns modos e outros. Os tempos que vivemos dão-nos demasiados exemplos dessas incompatibilidades para não ser necessário elaborar muito na matéria. Ou antes: é até muito preciso elaborar muito na matéria, para percebermos com algum discernimento o que se passa e que corre, ou corria, sob a designação de “choque de civilizações”. Mas não é isso que me interessa aqui, neste momento.
O que interessa é que, de facto, o nosso contacto com a realidade social (e não apenas com esta, de resto) se parece fazer, de um modo muito mais vasto do que normalmente se pensa, através de um filtro emocional que dita o grosso dos nossos comportamentos. Em jargão filosófico, através de desejos de segunda ordem, ou desejos de desejos. E que uma sociedade só subsiste se houver uma comunidade assaz extensa desse tipo de desejos. A não existir tal comunidade, a sociedade dificilmente sobrevive.
Ora, sendo os seres humanos aquilo que são, há quase fatalmente dois tipos de atitude face a essa partilha de desejos reflectidos, de desejos de segunda ordem, de desejos de desejos. Uma das atitudes possíveis aceita uma grande flexibilidade na simpatia que nos une. Vivemos em sociedade, mas, dentro de uma certa comunidade de desejos, há margem para uma grande diversidade nas suas manifestações. Apesar de tudo, não somos todos uma única pessoa. Somos muitas pessoas, vivendo contiguamente, e partilhando semelhanças (a começar, obviamente, a da língua), mas muito diferentes entre si. Aceitar essas diferenças é fundamental.
A outra atitude leva a exigência da comunidade das paixões a um patamar muito mais elevado. É como se a exigência da semelhança adquirisse proporções inauditas, a tender para a quase identidade. Um pouco à maneira do gosto estético: como se nos sentíssemos no direito de exigir que todos os outros partilhassem o nosso. Qualquer posição contrária à nossa se veria afectada de uma ilegitimidade fundamental, tanto moral como política. É a atitude dos entusiastas, que exigem uma feroz unanimidade em quase tudo.
Admito perfeitamente que possa ser exagero meu, embora duvide. Na nossa sociedade, é a chamada “esquerda”, ou uma boa parte dela, que adopta maioritariamente a segunda atitude. Não é só a manifesta tendência a supor a radical ilegitimidade daqueles que não partilham o modo como as paixões comuns são por ela concebidas. É a própria adopção de um entendimento quase estético da comunidade das paixões que vê a luz do dia e que conduz a uma indisfarçável arrogância e a uma agressividade militante. Basta pensar no que se disse, e se diz, de Cavaco e de Passos, entre outros. O desgosto face a eles exprime-se muito reveladoramente numa linguagem que, muitas vezes, é quase apenas a do desgosto estético. A maneira como se vestem, os lugares onde moram, a cultura – a nossa – que supostamente não possuem, etc. Como se, pelo simples facto de não terem a imagem que de nós mesmos queremos ter os condenasse a uma definitiva ilegitimidade política.
Mais uma vez, posso estar enganado, mas não vejo na generalidade da direita uma tal feroz exigência inconsciente. O que torna, banalmente, a actual direita mais democrática do que a esquerda. A oposição à esquerda não sofre de uma tal vontade de identidade. Como não sofre de uma tal entusiástica vontade a relação que a direita tem com os seus representantes, um facto que merece ser sublinhado. Uma pessoa pode respeitar e admirar Passos ou Cavaco – é, confesso, o meu caso, e acho que temos imensas razões para lhes estarmos gratos – sem os querer, nos mais subtis prazeres intelectuais, iguais a nós. Basta reconhecer neles uma vontade de respeitar as paixões comuns que fazem, nos melhores casos, a nossa sociedade uma sociedade onde valha a pena viver, e competência e determinação na defesa dessa sociedade. Com várias discordâncias, é claro, pelo caminho.
Por esta e por outras é que o discurso político da direita é, nos melhores casos, mais livre e mais respeitador da liberdade do que o da esquerda. Porque, quando pensa os desejos e as aversões políticas, para voltar a Adam Smith, não o faz a partir de imoderados e ferozes entusiasmos justiceiros. Entusiasmos esses que, já agora, nos estão quase fatalmente a levar a um precipício que conhecemos bem demais alguns anos atrás.