Por consenso, o país oficial decidiu que as autárquicas eram a ocasião para Passos Coelho se retirar. O próprio admitiu que talvez não continue. O que quer dizer que o PSD pode estar à beira de uma descoberta dramática. Muitas boas almas parecem convencidas de que outro líder terá vida mais fácil. Imaginem: alguém que nunca teve de cortar pensões! Infelizmente, é uma ilusão.

Passos foi primeiro-ministro quatro anos e meio, mais tempo do que qualquer outro líder do PSD, com excepção de Cavaco Silva; ganhou duas eleições legislativas, como só Sá Carneiro e Cavaco Silva ganharam. Se nem mesmo assim o pouparam a uma contínua verrina interna, como será com um líder sem estes pergaminhos? Até porque o contexto não vai melhorar. Um novo presidente do PSD terá de enfrentar imediatamente este problema estratégico: prosseguir a política de Passos, e ver-se acusado de ser o “Passos número 2”; ou mudar, e ver-se suspeito de ser um peão de António Costa.

O problema do PSD não é Passos Coelho, mas este: o PS, desde o fim do governo de Cavaco Silva, transformou-se no partido do Estado e das clientelas do Estado, que são, neste como em anteriores regimes, a base do poder político em Portugal. Domina quem, a partir do Estado, tem meios para multiplicar e alimentar bocas. Nos últimos vinte anos, o PSD nunca teve esses meios. Apanhou sempre o lado mau do ciclo da governação, quando, após uma temporada de despesismo socialista, foi preciso congelar e cortar — em 2002 e em 2011. O PS pôde governar sozinho, em maioria ou em minoria, em ambiente geralmente de optimismo e consenso; o PSD teve de governar em coligação, no meio de toda a espécie de crispações. Previsivelmente, o PS emergiu como o “partido natural do governo”, o guardião do “sistema”, o abrigo dos interesses. A aliança de Ricardo Salgado com José Sócrates é a prova mais clara de como os poderes fácticos da sociedade portuguesa reconheceram os socialistas como interlocutores privilegiados.

A questão é saber se a sociedade portuguesa tem força para desejar outra coisa que não privilégios e benesses do Estado. Durante o ajustamento de 2011-2014, julgou-se que sim. Já se percebeu entretanto que não. Basta recordar a última campanha autárquica, e os subsídios, as casas, os benefícios fiscais prometidos em troca de votos.

Passos Coelho nunca teve ilusões a esse respeito. Por isso, pareceu que esperava nova emergência financeira, o que autorizou muita gente a declará-lo refém do passado. Não era isso. Simplesmente, não via em Portugal outro meio de rotação no poder. É a lição de 2001 e de 2011. Vai o PSD esperar, continuar a propor outro modo de vida, e sujeitar-se assim ao cerco oligárquico que sofreu Passos? Ou vai, pelo contrário, entrar no mercado de “entendimentos” que o PS já abriu com o PCP e o BE? A segunda opção tem um preço: a redução do PSD, que tem sido a alternativa ao PS, a um simples lóbi da governação socialista. É a mais antiga aspiração do PS: poder tratar o PSD e o CDS como os equivalentes da direita do PCP e do BE. Teríamos um regime com um partido grande e quatro partidos pequenos, com quem o partido grande rodaria na governação, umas vezes mais à esquerda, outras mais à direita.

Por convicção, percurso ou feitio, Passos representa na política portuguesa aqueles que não se querem adaptar ao continuado domínio do governo pelos ex-ministros de António Guterres e de José Sócrates. Por isso, Passos foi tão atacado como Sá Carneiro, que também nunca se conformou com os arranjos oligárquicos do seu tempo. Mas o resto do PSD? Ter-se-á já convencido de que não vale a pena resistir? A caverna de Costa é tão tentadora como a de Circe. Irão mais uma vez os companheiros de Ulisses transformar-se em porcos?

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