Apesar dos desaires de Obama, da demissão de Miguel Macedo e de outras coisas de que não me lembro, o mundo em que vivemos não é tão mau assim. É claro que persiste, sob novas formas, a já habitual abjecção do terror islâmico e a crise continua, como forçosamente tem de continuar até vá-se lá saber quando. Mas há vários pensamentos que nos podem distrair de um mal-estar excessivo.

A mim, o que me distraiu na última semana foi a leitura de duas biografias, ambas já com uns anos, de dois escritores franceses, Louis-Ferdinand Céline e Roger Vailland. As escolhas que a muitos parecia necessário fazer nos anos 30 e 40 do século passado, anos de uma rejeição da democracia “burguesa” e “decandente” que atravessava a esquerda e a direita, anos de amores de perdição pelo fascismo e pelo comunismo, não facilitavam a vida a ninguém. Em França, particularmente, o fenómeno atingiu proporções épicas.

Até porque, em muitos casos, a hesitação entre uma escolha e outra não foi fácil. Muita gente que acabou na colaboração com o nazismo nos anos quarenta vinha da esquerda. Mas a vontade de evitar a guerra a todo o custo através de uma aliança franco-alemã facilitou a transição da esquerda para o nazismo, e, ao mesmo tempo, a transformação de um antissemitismo mais ou menos tradicional em algo dotado de uma violência inaudita.

Louis-Ferdinand Céline

Louis-Ferdinand Céline

Céline, mais velho do que Vailland (nasceu em 1894, Vailland em 1907), publicou em 1932 um dos mais extraordinários livros da literatura francesa do século XX, logo traduzido em russo, de resto, por Elsa Triolet, mulher do mais célebre romancista comunista francês, Louis Aragon, Voyage au bout de la nuit. Mas, com o advento da Frente Popular, e, sobretudo, com a ameaça da guerra, logo surgiu, em 1937, o mais violento panfleto antissemita daqueles anos (o que não é dizer pouco), Bagatelles pour un massacre. O antissemitismo largamente difundido na sociedade francesa torna-se em Céline um delírio alucinatório, como André Gide notou à altura, sem o levar muito a mal (ou muito a sério), como não o levaram muito a mal (ou muito a sério) a maior parte dos críticos da época. Apesar de tudo, todo aquele ódio aos judeus era um ódio a favor da paz entre a Alemanha e a França, isto é, da paz na Europa.

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Em 1944, Céline, cuja relação com os alemães na ocupação tinha estado longe de ser das mais assíduas entre os intelectuais franceses, foge primeiro para a Alemanha e depois para a Dinamarca. Volta à França em 1951, para se instalar em Meudon, a sudoeste de Paris, com a mulher, gatos, cães e, no fim, um papagaio. Morreu em 1961. Os três últimos romances retratam a fuga para a Alemanha e o exílio dinamarquês. Céline morreu intimamente convencido de que o antissemitismo transmitido pelo seu absoluto génio verbal se encontrava integralmente isolado da realidade e, portanto, era insusceptível de quaisquer consequências possíveis no plano empírico. Ele, Céline, não era culpado: era vítima. Tinha-se limitado a escrever.

Roger Vailland

Roger Vailland

A história de Vailland é certamente muito diferente. Depois de uma violentíssima exclusão, ainda muito novo, do grupo surrealista (mais exactamente: das redondezas deste) por André Breton e Aragon (sempre ele), Vailland foi um jornalista que a pouco e pouco forjou uma ética pessoal, a do libertino de “olhar frio”. É verdade que em 1941 meditou seriamente na possibilidade de colaboração com os alemães, mas acabou na resistência, de cuja experiência fala o seu primeiro romance, Drôle de jeu (1945). E da resistência ao Partido Comunista Francês foi, depois da Libertação, um passo – um passo, de resto, há muito desejado, mas que o PCF retardou convenientemente por causa das mulheres, do álcool e da droga.

O problema é que com o PCF veio o estalinismo e a ética do “olhar frio” desdobrou-se no culto do “verdadeiro bolchevique”, intransigente e impiedoso. Daí, por exemplo, a atitude para com o antigo amigo, o comunista húngaro Szekeres, quando este se recusou a voltar de Roma, onde era secretário da representação diplomática do governo comunista, à Hungria, por saber como por lá se procediam aos inquéritos destinados a “clarificar a situação pessoal”. Corte de relações absoluto com o antigo amigo, que tinha passado a fora da lei do comunismo (Jorge Semprun fez o mesmo, e contou-o). Entre outras coisas.

Chegou depois a ressaca. Primeiro, as revelações de Khrushchov sobre os crimes de Estaline no Vigésimo Congresso, e, a seguir, a invasão russa da Hungria em 1956. A pouco e pouco, no meio de uma crise profunda, foi-se embora o culto do “verdadeiro bolchevique” e veio o “desinteresse”, que também transformou em tema literário (valha a verdade que se diga que desde Drôle de jeu o “desinteresse” já existia, de uma forma subtil, como pano de fundo, nos romances). Vailland morreu em 1963 de um cancro no pulmão que até ao fim se recusou a reconhecer que tinha.

As vidas de Céline e Vailland não são “vidas paralelas”. Em primeiro lugar, porque a excentricidade radical de Céline não lhe permite ser paralelo a ninguém. Em segundo lugar, porque, até por razões de idade, o verdadeiro paralelo a buscar para Vailland seria o do intelectual colaboracionista Robert Brasillach, em tempos seu amigo, e esse sim um verdadeiro fascista. (Vailland encontrou-o em Paris logo a seguir à Libertação, no café Deux Magots, e propôs-lhe refugiar-se numa casa de campo à qual tinha acesso, para fugir à perseguição que se iniciava aos colaboracionistas. Brasillach agradeceu e recusou. Sabia que ia ser preso e fuzilado e que não podia escapar). Há um ponto, no entanto, em que as vidas de Vailland e de Céline se cruzaram, ou melhor, se poderiam ter cruzado, acabando com uma delas. Num artigo de 1950, Vailland declarou que, com vários resistentes, havia planeado assassinar Céline durante a ocupação e que tinha pena de não o ter feito. Céline, que só em 1958 tomou conhecimento do escrito de Vailland, respondeu-lhe no seu habitual estilo, tratando-o de idiota.

Não conto esta história toda para falar do mérito ou da responsabilidade dos escritores. Li quase todos os romances de Vailland quando pude, novo, e li muito menos Céline do que devia. Mas Céline é certamente um muito mais duradouro escritor do que Vailland, cujos romances, no entanto, estão longe de serem desprezíveis. Também não tenho dúvida que a alucinação antissemita de Céline (digo “antissemita” e não acrescento nada porque não se pode verdadeiramente falar de fascismo, ou nazismo, de Céline) é muito mais repugnante do que a alucinação bolchevique de Vailland. Mas isso não interessa aqui.

O interesse da história está no facto de, vendo isto, uma pessoa notar que não é fácil assimilar grandes escritores dos nossos dias, ou escritores com eco efectivo na maneira de pensar dos leitores, ao antissemitismo e ao comunismo. Pelo menos eu não os conheço. Nem a outro sistema de pensamento do tipo de qualquer um dos dois. Claro que há muitos escritores comunistas e muitos escritores antissemitas. Mas não há, que eu saiba, grandes escritores, nos nossos dias, nos quais a matéria da obra literária se encontre ligada, em parte substancial, a alucinações desse tipo.

E isso indica alguma coisa sobre a nossa sociedade, partindo do princípio que os grandes escritores nos revelam, e antecipam, algo sobre o seu estado. Há várias manias que tornam a sociedade, sob muitos aspectos, desagradável (o chamado “politicamente correcto” resume muitas delas). E há certamente muitos domínios onde a liberdade é menor do que, digamos, há vinte anos atrás. Mas, no conjunto, a democracia não está tão mal assim. O antissemitismo só encontra uma voz efectivamente poderosa no fanatismo islâmico e o comunismo em tendências somando tudo minoritárias, cujos porta-vozes intelectuais se revelam, depois de uma análise cursiva, pouco credíveis e pouco influentes. Não pretendo que não haja tendências que possam mudar a situação. Há-as, sem dúvida. Mas não se vê como possam vencer a curto prazo. Dito de outra maneira: não estamos num tão triste estado como às vezes se pinta.