A propósito de um artigo de Pacheco Pereira e outro de Ricardo Araújo Pereira, em torno da chamada “linguagem inclusiva” e do glossário LGBTetc., houve um pequeno caudal de prosa abespinhada que se publicou por aí, nomeadamente no Público, que cada vez mais toma para si a missão de educar os verdadeiros “portugueses de bem” nas delícias do delírio contemporâneo. Essa prosa não era muito importante. Na verdade, era insignificante, oscilando entre o furor indignado – um estilo recorrente na opinião jornalística – e uma muito cómica pretensão à cientificidade – uma não menos habitual manifestação da ignorância que a si mesma se ignora. Tudo isso sem que a língua portuguesa se ria, galhofeira, como Alexandre O’Neill queria, com quem assim escreve – antes, como O’Neill desqueria, falando bonito, chique e pudico. Por essa razão, o simples bom senso aconselharia a deixar a prosa sossegada nas suas agitações e a passar a matérias verdadeiramente interessantes.

Acontece, no entanto, que a prosa em questão, a tal prosa chique e pudica, acaba por ser significativa de um certo ponto de vista: ela exprime, à sua maneira fruste, uma tendência geral do pensamento democrático contemporâneo que encarna, sem verdadeiro paradoxo, uma vocação despótica, uma tendência que, com uma presciência que nunca será demais sublinhar, Tocqueville diagnosticou já em meados do século XIX. Na sua forma actual, essa tendência manifesta-se de múltiplas maneiras, que são coerentes entre si e que transcendem de longe as questões de género: o apelo a uma regimentação da linguagem, tão mais invasiva quanto novas proibições do uso linguístico se sucedem umas às outras, acompanhando a luxuriante criação de novos termos, quer de utilização obrigatória, quer denominando o que se poderia chamar “crimes de palavra” (por exemplo, “capacitismo”); a divisão da sociedade em identidades estanques que não comunicam entre si, já que tal comunicação seria vista como um modo de ceder ao poder opressivo de uma suposta maioria que tem por objectivo único a destruição dessas mesmas identidades; a própria exorbitação das identidades, que as alça a um patamar metafísico absoluto; e a dissolução dos indivíduos, com a sua dinâmica própria, na identidade metafísica que são supostos representar (veja-se tudo o que se diz sobre o “género”). Poderia continuar, mas isto chega.

É difícil não ver neste tipo de discurso uma quase paródia do platonismo, sem, obviamente, a consciência das aporias que o génio de Platão reconheceu na sua própria construção. Como se sabe, Platão distinguia o mundo das ideias, ou das formas, eterno e inamovível, do mundo fenomenal, passageiro e mutável. Os habitantes do mundo fenomenal “participavam” dos habitantes do mundo das ideias, recebendo destes o que de precária realidade ontológica possuíam. O que obrigava Platão a reconhecer, no mundo das ideias, o kosmos noetos, ideias como, por exemplo, a de pêlo, da qual os pêlos sensíveis seriam uma cópia ou imitação. O novo platonismo do discurso identitário reproduz, na sua essência, este arranjo metafísico das coisas. Até na sua dissolução dos indivíduos em identidades absolutas das quais são provisórias encarnações. E não há a mínima variação sensível que, à imagem do pêlo, não encontre logo uma ideia eterna que lhe corresponda e que a “ciência” justifica (aquele “+” em “LGBTQIA+” indica exactamente o infinito dessa população no mundo das ideias). A diferença principal entre as duas construções reside aqui, é claro, para além daquela que resulta do génio de Platão, em que a primeira foi, logo desde Aristóteles, vista por muitos como como uma depreciação do sensível e da sua riqueza e a segunda é concebida como uma “libertação”.

Mas não é uma “libertação”. Basta ler Montaigne para ver que não é. A identidade dos indivíduos – de todos os indivíduos – é dinâmica, não matemática. Cada um busca para si, ao longo da vida, a criação de uma “forma própria”. Mas essa criação faz-se na vida, que é um movimento imperfeito, avesso à estabilidade e à solidez. “Há pouca relação entre as nossas acções, que se encontram em perpétua mutação, e as leis fixas e imóveis”. Não passamos, como ele diz, de retalhos diversos, no fundo descosidos uns dos outros, e mesmo descosidos de nós mesmos, mesclados e remendados. Montaigne viu bem que a criação da “forma própria” é o resultado de uma dissemelhança constante que permite, no fim, uma auto-imposição de limites, um apanhar da vida como um todo. Aqui sim, trata-se de libertação. A “forma própria” não é o resultado de uma “participação” no mundo das ideias. É o resultado de uma actividade que é, no fundo, uma actividade de auto-elucidação.

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Não andamos, por acaso, longe de Freud. Há muito tempo que me apanho a lamentar o modo como Freud se tornou um pensador maldito e propriamente irrecebível para a cultura contemporânea, algo que alguém com a minha idade teria dificuldade, uns anos atrás, em imaginar. Não falo de Freud como o inventor de uma técnica terapêutica nem da psicanálise como um todo: falo de Freud como um filósofo da alma – ou da psique, se se preferir a palavra de origem grega à palavra de origem latina. Nestes tempos, Freud faz imensa falta. Até porque se encontra nos antípodas do platonismo despótico do discurso identitário.

Com efeito, como vários outros filósofos, Freud concedeu uma grande importância ao princípio da continuidade. Há continuidade entre as várias formas de sexualidade. Há continuidade entre cada ser humano e a variedade quase ilimitada da humanidade. Há continuidade entre o pensamento vigil e o pensamento do sonho. Há continuidade entre os factos psíquicos normais e os factos psíquicos mórbidos. E por aí adiante. E é sobre essa continuidade que se estabelecem todos os conflitos dinâmicos que constituem a vida psíquica. O projecto de Freud – fazer nascer o Eu aí onde se encontra o Id, o inconsciente – possui notáveis semelhanças, sob vários aspectos, com o de Montaigne: o Eu freudiano – que, conquistando espaço ao Id, nos permite melhor amar e trabalhar, transformando a miséria neurótica em banal sofrimento – é afim da “forma própria” de Montaigne.

Freud faz falta porque o seu pensamento é um convite à reflexividade que é a condição indispensável da liberdade. E é apenas a liberdade que nos permite simultaneamente empatizar uns com os outros – o que implica a admissão da continuidade que nos liga – e guardarmos para com eles uma indiferença positiva que é uma forma de reconhecer a sua autonomia. Tudo aquilo que o identitarismo contemporâneo, na violência sobre a linguagem comum que exerce, nega, quaisquer que sejam as boas intenções – em Portugal, as boas intenções do puritanismo possível a católicos ateus – que em muitos casos o possam mover.