Quando escrevi o artigo da semana passada, sobre Putin e os seus adeptos, não sabia que o assunto ia voltar a fazer manchetes de jornais, ainda que indiretamente. Mais uma vez, Moscovo aparece alegadamente envolvido com a administração americana e os seus serviços secretos.

O presidente Donald Trump está sob pesado escrutínio da imprensa norte-americana – com fortes ecos nos media internacionais– pela demissão de James Comey, diretor do FBI, sem apresentar de uma justificação que convença muita gente.

Como se não bastasse, começaram a surgir informações, por confirmar (não me lembro de uma Casa Branca com tantas fugas de informação), de que as relações do presidente com o FBI terão azedado porque Comey insistiu em investigar os relações de Mike Flynn ao embaixador russo em Washington, forçando a demissão do então Conselheiro de Defesa Nacional. O diretor do FBI persistiu ainda em levar avante a investigação das ligações de membros proeminentes da administração com o Kremlin. Carrego o texto de “alegadamentes” porque, na verdade, nenhum destes assuntos está definitivamente confirmado.

Mas ainda mais inquietante, para o mundo, terá sido a reunião de Donald Trump com o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergey Lavrov, com quem o presidente dos EUA terá, “alegadamente” (outra vez), partilhado informação secreta sobre o Daesh, obtida junto de um aliado, aparentemente Israel. Se, por um lado, o presidente americano não terá ultrapassado os seus poderes, por outro, dizem os media, que as revelações podem pôr em risco agentes de estados aliados. Estados aliados?

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É aqui nesta expressão – estados aliados – que se encontra a chave de todos estas questões. Os repetidos episódios da relação privilegiada que Donald Trump quer por força estabelecer com a Rússia, apesar das óbvias tensões com o seu gabinete, são reveladores de problemas muito mais simples, mas igualmente importantes, que o presidente dos Estados Unidos pôs em causa: a continuidade em política externa, a geometria de alianças e a confiança entre estados. Estes três elementos, prove-se o que se provar, já estão profundamente abalados.

Primeiro a continuidade: Trump mostra-nos todos os dias que é um Jacksoniano. Podia escrever-se um tratado sobre esta tradição identitária americana (que mais que uma fação política é um estado de espírito que atravessa uma parte da sociedade e se torna importante em momentos de crise), mas o mais importante é que esta linha representa uma acentuada rutura com o passado. Os Jacksonianos são fechados em si mesmos, preferem centrar-se nos seus problemas internos, mas reconhecem que às vezes é preciso dar um jeitinho no mundo para poderem dormir descansados. Daí as diversas demonstrações de força norte-americana durante o mês passado. Os Jacksonianos também não gostam que o exterior lhes diga o que fazer, por isso quando atuam internacionalmente, atuam sozinhos. Não gostam de organizações internacionais, não gostam da ideia de proteger aliados a troco de legitimidade, não gostam da ideia de que a democracia deve ser o fator de legitimidade dos estados e preferem deixar as esferas de influência de outros estados a esses mesmos estados. Trump e os seus ataques cirúrgicos, mas assertivos, mostram isso mesmo. São avisos a estados fracos que perturbam a estabilidade internacional (Síria, Coreia do Norte, Afeganistão) e aos estados poderosos, como a Rússia e a China, que não são capazes de controlar os seu estados-clientes.

O que nos leva ao segundo ponto, o que me parece ser o mais importante. Trump transformou completamente a geometria das alianças norte-americanas. Melhor, apagou a palavra “aliado”, iniciando uma política externa que privilegia a relação com outros estados poderosos, sem olhar ao seu comportamento doméstico ou internacional, o que é um comportamento incaracterístico dos EUA. Se Washington quer é dedicar-se a assuntos internos, a proteção de aliados fracos é um fardo, tornando-se uma necessidade a relação com estados capazes de pacificar determinadas zonas atribuladas do globo.

Esta mudança na política de alianças (ou a falta dela) leva-nos ao último ponto. É certo que a teoria das relações internacionais nos diz – e bem – que a maioria dos estados procuram relações cordiais com os parceiros mais poderosos, pelo menos enquanto não tiverem poder para os destronar. Por isso, não será de admirar que líderes de todo o mundo, incluindo os aliados tradicionais, ainda que desapontados, continuem a ir à Casa Branca e a receber altos dignatários de Washington. Porém, a prática diz-nos que o comportamento dos estados continua a ser a moeda de troca da diplomacia. Ora, as reviravoltas da nova administração só podem levar à perda de confiança dos que, durante décadas, olharam para os Estados Unidos como líderes do mundo livre. Sabe-se da vida comum que a confiança, uma vez perdida, é difícil de recuperar.

Esta mudança é profunda. Não faz manchetes de jornal, porque a ordem internacional (a forma como os estados se organizam entre si para evitar guerras) é tão importante quanto (quase) invisível. Esta experiência é nova e não lhe sabemos o impacto final. Porque não lhe conhecemos o desfecho. Disse Gramsci, nos anos 30 do século passado, que “o velho mundo está a morrer, o novo tarda em nascer. E neste claro obscuro chegam os monstros”.

Esperemos que, desta vez, Gramsci esteja enganado.