As ameaças militaristas de Vladimir Putin não tiveram apenas como objectivo amedrontar o mundo, mas visaram principalmente encobrir os fracassos da sua política interna e o não cumprimento das promessas que vai fazendo aos russos há já 18 anos.
O discurso de Vladimir Putin foi anunciado como uma mensagem à Assembleia Federal, órgão que reúne das duas câmaras do Parlamento, ritual anual que já deveria ter sido realizado, mas que foi adiado para que se transformasse num show com vista à reeleição do actual Presidente russo nas eleições marcadas para 18 de Março.
Foi escolhida uma sala muito maior do que a habitual sala do Kremlin e foram convidadas muitas ilustres figuras da vida política, social e religiosa do país. E para animar o show, Putin decidiu, pela primeira vez, recorrer à infografia.
O dirigente russo começou por enunciar os problemas graves que o país continua a enfrentar. A solução para muitos desses problemas já tinha sido prometida várias vezes durante os 18 anos que dirige o país, mas Putin arranjou, à velha maneira soviética, uma razão para explicar esses fracassos. Ficamos a saber que a culpa das desgraças se deveu à necessidade da Rússia se rearmar para se defender dos seus inimigos externos, dos Estados Unidos neste caso concreto. O líder russo explicou que o armamento foi construído no seguimento da saída dos Estados Unidos do tratado anti-balístico assinado em 1972 com a União Soviética.
Para provar em que tinham sido gastos os muitos milhões, mostrou “armas nunca vistas”, que não têm análogos no mundo: mísseis invisíveis, submarinos não tripulados, etc.
Ao falar num dos sistemas de armas “milagrosos”, Putin tentou tirar qualquer tipo de esperança aos potenciais adversários: “Ninguém no mundo tem um sistema destes, isto é inédito. Podem criar algo semelhante no futuro, mas por essa altura, os nossos rapazes terão criado outras coisas novas”.
E para que se dúvidas restassem, frisou: “Não ouviram o nosso país nessa altura. Ouçam-nos agora”!
Aqui vêm à memória tiradas exóticas de Nikita Khurschov, antigo dirigente soviético, quando, na Assembleia da ONU, tirou um dos sapatos e bateu com ele na tribuna para fazer calar os seus opositores. Ou a sua expressão “vamos mostrar-vos a mãe de Kuskin”, que continua hoje a ser um mistério para os tradutores, pois desconhecem-se tanto uma como outro. E onde está hoje a União Soviética?
Alguns especialistas russos já vieram pôr em dúvida a possibilidade da produção de algumas das armas referidas por Putin: “um pequeno sistema de energia nuclear”, que pode ser implantado num qualquer sistema de mísseis de cruzeiro e “evitar todos os intercetores”.
“Li com atenção a citação do discurso de Putin. Lá há alguma confusão: semelhantes coisas são impossíveis, e nem sequer são necessárias. Não se pode instalar num míssil de cruzeiro um motor nuclear. E semelhantes motores não existem. Está na fase de projecto um motor desses, mas ele é espacial, e claro que em 2017 não se realizaram testes. Seria bom se semelhante teste se realizasse em 2017”, declarou Ivan Moiseev, dirigente do Instituto de Política Espacial, ao jornal electrónico The Insider.
Quanto ao novo míssil com uma “trajectória de voo imprevisível”, o cientista comentou: “Qualquer míssil tem uma trajectória imprevisível. Se receber ordem de comando, o míssil muda de direcção. Se o míssil voar sem motor, então a sua trajectória é previsível, se tem motor, a sua trajectória depende de quem comanda, ou seja, pode-se dizer que é imprevisível”.
Mas, no meio de tanta euforia propagandística, as vozes dos que previnem para o aumento insuportável para a economia russa da corrida aos armamentos não se ouvem.
Tanto mais que, agora, depois de, como disse o Presidente russo, “termos feito muito para fortalecer o nosso exército e marinha, que estão equipados com armas modernas”, promete, em seis anos, ou seja, no seu último mandato (se não tirar outro coelho da cartola para prolongar a sua estadia no Kremlin), resolver problemas como “o bem-estar das pessoas”, a situação demográfica desastrosa, a modernização de infraestruturas, o combate à corrupção, etc., etc. , ou seja, o que já prometeu muitas vezes.
Se, com o seu discurso, Putin tentou imitar Donald Trump, não só conseguiu isso, como até o ultrapassou, tendo atingindo o nível de Kim Jung-il.
“The show must go on”
P.S. Previsões para os “resultados” das presidenciais na Rússia: 70% de afluência às urnas e 73% de votos em Putin. A margem de erro é de 2-3%.