Os russos dizem que “a Rússia é um país com um passado imprevisível” para sublinhar que a história pode ser reescrita ao sabor dos desejos do senhor no poder. O problema é que o passado é revisto, na maior parte das vezes, para justificar os devaneios do presente.

Quando eu estava na Faculdade de História da Universidade de Moscovo, um professor mais ousado e aberto da disciplina de História do Partido Comunista da União Soviética decidiu mostrar-nos como é que isso se fazia na prática. Trouxe-nos três livros sobre o mesmo tema: a revolução comunista de 1917, escritos entre 1918 e 1929. No primeiro, os principais mentores e realizadores do golpe são Vladimir Lenine e Lev Trotski, aparecendo José Estaline num lugar insignificante; no segundo, Trotski desaparece, passando Lénine a ser acompanhado na direcção por Estaline e, no terceiro, Trotski passa a adversário, Estaline a figura central e Lenine a ajudante do ditador soviético.

Recentemente, realizou-se um Concílio Mundial do Povo Russo, cujo dirigente máximo é o Kirill I, Patriarca de Moscovo e de toda a Rússia. Nele participaram altos dirigentes religiosos, políticos e militares.

Ora aí foi decidido definir quem se pode considerar russo. Segundo uma declaração aprovada, “russo é aquele que se considera russo; que não possui outras preferências étnicas e que pensa em língua russa; que reconhece no cristianismo ortodoxo a base da cultura espiritual nacional; que sente solidariedade com o destino do povo russo”.

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Com apenas esta definição deixam de ser russos Piotr Tchaadaev pensador católico do séc. XIX, ou o poeta ateu Vladimir Maiakovski ou até um dos maiores dos clássicos da literatura mundial Lev Tolstoi, que, como é sabido, foi excomungado pela Igreja Ortodoxa Russa por criticar duramente a sua doutrina e prática. Mas a lista de excluídos poderá ser bem mais extensa.

Num país multinacional como a Rússia, o aparecimento de semelhantes “definições” é extremamente perigoso, pois cria ou acentua novas linhas fracturantes na sociedade.

Aqui, não posso deixar dar razão ao Presidente Putin que escreveu há dois anos atrás: “Para a Rússia, com a sua multiplicidade de línguas, tradições, etnias e culturas, a questão nacional, sem qualquer tipo de exagero, tem um carácter fundamental. Qualquer político responsável, activista social, deve ter presente que a concórdia cívica e entre nacionalidades é uma das principais condições da própria existência do nosso país”.

Mas os tempos mudaram e talvez a nova definição de russo esteja mais na moda entre as elites políticas e religiosas do país. Afinal, o passado é imprevisível e os amigos de ontem são os inimigos de hoje.