Quarenta e oito anos depois de Salazar ter saído de cena onde estamos? A quem viveu o PREC basta fazer as contas e perceber que levamos sem Salazar aquele número mágico dos 48 anos que, em 1974, tudo explicavam: era a longa noite dos 48 anos do fascismo, os 48 anos de opressão, os 48 anos de miséria… num crescendo em que os 48 anos pareciam um século.
Salazar morreu oficialmente há 46 anos, a 27 de Julho de 1970. Mas a sua morte política teve lugar dois anos antes quando, no dia 3 de Agosto de 1968, caiu no Forte de Santo António. As histórias da História registam uma queda acidental numa cadeira de lona como a causa do processo que levaria, em Setembro desse mesmo ano de 1968, ao seu afastamento do cargo de Presidente do Conselho.
Para a oposição, cujos líderes eram então jovens, a imagem de Salazar a estatelar-se de costas, era mais um episódio da decrepitude que eles achavam que nunca iriam sofrer. Para o regime a queda da cadeira foi também uma história conveniente pois, caso a queda não tivesse sido acidental, haveria que reconhecer que ela era apenas o culminar de uma doença de que Salazar já dera sinais no Conselho de Ministros que tivera lugar a 12 de Junho de 1968. Nesse Conselho de Ministros, segundo recorda Franco Nogueira, um Presidente do Conselho fisicamente debilitado repetiu, sem aparentar qualquer consciência disso, parte da intervenção que fizera no dia anterior.
Reconhecer que Salazar estivera quase três meses (de 12 Junho – quando ocorre o conselho de ministros em que Salazar manifestamente mostra um quadro de alguma confusão – a 6 de Setembro, quando é hospitalizado) já intelectualmente diminuído em funções era per si embaraçoso mas para cúmulo nesse período, ou mais precisamente a 19 de Agosto, Salazar remodelara o Governo, mexendo em pastas tão importantes quanto o Exército, Marinha, Educação e Finanças. Assim a queda acidental na cadeira tornou-se a versão conveniente para todas as partes.
Mas tenha sido acidente ou sinal de doença, a queda da cadeira nesse Agosto de 1968 é o princípio da morte de Salazar. Rapidamente o salazarismo, que nunca foi uma ideologia, arreigou-se como uma espécie de nostalgia tão mais tranquila quanto garantidamente a tal tempo e modo de viver não se pode regressar e presumo que ninguém verdadeiramente o queira, a começar pelos próprios salazaristas.
Ao lado deste “salazarismo-produto da nostalgia” emprateleirado entre artigos tradicionais que tal como o salazarismo ninguém usa, impôs-se vigorosamente o anti-salazarismo. Durante décadas da nossa democracia, tudo em Portugal foi bom ou mau consoante fosse, ou não, apresentado como salazarista ou “do tempo de Salazar”. As mais prosaicas leis ou até simples regulamentos de cargas e descargas ganhavam estatuto de mudança urgente caso alguém descobrisse que tinham sido rubricados por Salazar.
(Quando os tempos impuseram que se gostasse do que, por sinal muito erradamente, fora sendo associado a Salazar – casos do fado, do futebol e também de Fátima – rapidamente se conferiu a esses até aí pilares do salazarismo a aura da expressão popular e da resistência ao Portugal de Salazar. Dada a rapidez das mudanças do campo “do pilar do salazarismo” para o “da resistência ao Portugal de Salazar”, espero pelo Verão, certamente próximo, em que veremos a “Cantiga da boa gente” a ser estudada nos acampamentos do BE como “manifesto alternativo feminino qualquer coisa”.)
O estatuto de anti-salazarista tornou-se num dos maiores paradoxos da democracia portuguesa: o facto de se ter feito equivaler anti-salazarismo a combate pela liberdade levou a que terroristas, ladrões, violadores e orgulhosos servidores de regimes totalitários estrangeiros (a que alguns até transmitiram informações militares) acabassem a ser apresentados como defensores da democracia, regime que alguns dos anti-salazaristas abominavam ainda mais que Salazar.
Se esta identificação entre anti-salazarismo e liberdade gera equívocos quando falamos do período em que Salazar esteve no governo (1928-1968), para o período da I República o resultado é anedótico pois pretende-se que os líderes da I República não só estavam imbuídos de um presciente anti-salazarismo como que o próprio regime republicano se regia pelas regras institucionais nossas contemporâneas. Resultado: assuntos como a repressão das greves na I República – que nesta versão dos factos não é suposto ter acontecido – e o voto das mulheres no Estado Novo – sim, no Estado Novo, para grande irritação da oposição, as mulheres passaram, embora com limitações, a poder votar e ser eleitas – acabam a causar a maior estranheza e incompreensão. A guerra que Portugal travou entre 1961 e 1974 em África é adjectivada como colonial porque decidida por Salazar. Já o esforço militar que Portugal travou em África durante a I Guerra é apresentado como defesa patriótica dos territórios ultramarinos.
Avaliar o passado em função da posição tomada por Salazar em cada contexto leva-nos a paradoxos como os atrás enumerados e, ironicamente, exime Salazar daquelas que são as suas óbvias responsabilidades políticas. Afinal Salazar, como muitos dos líderes não democráticos que se acreditam intelectual e moralmente muito acima dos seus contemporâneos, sejam eles seus apoiantes ou opositores, conduziu o regime que edificara para um beco sem saída ou de que a única saída seria um golpe.
Daqui resultou o inevitável: a natureza autoritária do regime condenava Portugal a ficar, mais cedo ou mais tarde, politicamente nas mãos dos militares o que no caso do então Ultramar seria trágico pois ao reprimir a formação de líderes políticos no âmbito partidário, o regime deixou o lugar de representantes daqueles territórios para os líderes dos auto-denominados movimentos de libertação que de libertação nada tinham e a quem, sobretudo no caso de Angola e São Tomé, faltava muito para serem movimentos fosse do que fosse.
Os moldes em que decorreu aquilo a que se chama descolonização resultam assim não de uma derrota militar mas sim da natureza ditatorial do Estado Novo – sem líderes políticos fortes no então Ultramar (não os havia nem os podia haver porque o regime não o permitia) o destino daqueles territórios e de quem neles habitava acabou como tinha acabar: a ser decidido, em 1974, em reuniões e plenários de oficiais, sargentos e praças. Naquilo a que então se chamava metrópole o desfecho foi outro porque nestas coisas a Geografia conta e os EUA (nessa época) também.
A democracia recuperou Salazar. O homem que o marcelismo progressivamente afastara de cena em 1968 e enterrara em 1970, que pouco a pouco fora ficando reduzido a umas breves notícias sobre a fundação que levava o seu nome e a missas por sua intenção voltou ao centro da retórica política. Afinal, descobria a nomenclatura do novo regime, era difícil viver retoricamente sem Salazar. Sem o poder culpar. Sem o poder julgar. Sem o poder invocar… E assim ao longo destes 48 anos tivemos o salazarista, o anti-salazarista e por fim o salazarento que até rima com bafiento.
Mas agora que a máquina fiscal detém mais informação sobre as nossas vidas do que a PIDE alguma vez conseguiu sobre os cidadãos, mesmo os que caíam na sua alçada, agora que já vimos como a decrepitude física e intelectual chega a todos, agora que estamos a caminho de mais uma falência, agora que os populismos tomaram conta da agenda, é mais que chegado o tempo de nos confrontarmos com o óbvio: boa parte da mediocridade do nosso presente e muitos dos nossos actuais bloqueios nascem do facto de boa parte dos líderes da nossa democracia e das nossas elites terem acreditado e feito acreditar que bastava declararem-se anti-salazarista para serem melhores portugueses e saberem o que era melhor para Portugal. Não bastava, como se viu e como se vê.