Quarta-feira Theresa May acionou a artigo 50 do Tratado de Lisboa. Aquela cláusula, que sempre se disse que nunca nenhum país ia acionar. Quem é que quereria ficar de fora da União Europeia na época da prosperidade? E depois da crise de 2008 deflagrar, quem quereria, verdadeiramente, ultrapassá-la sozinho?

O Reino Unido.

Há três razões fundamentais para termos chegado aqui. Nenhuma delas incontornável, mas qualquer uma delas (interligadas) plausível em contextos de tensão económica e social. A primeira é um profundo cansaço das populações europeias de um projeto com que deixaram de se identificar. A segunda é a tradição de separação geográfica e política da Grã-Bretanha relativamente ao continente. A terceira é uma forma de fazer política que tomou conta dos partidos europeus nos anos recentes, que leva a resultados muitas vezes surpreendentes e indesejáveis.

O primeiro ponto dispensa explicação. Falamos da geração Erasmus (da qual faço parte) e da identidade europeia por ela incorporada (que senti na pele quando vivi nos Estados Unidos, onde me viam como europeia, em vez de me verem como portuguesa). Mas isso não chega. As instituições europeias cumpriram o seu desígnio da estabilização e de paz e, até certo ponto, prosperidade no continente. Mas a certa altura passaram a fazê-lo de gabinetes encerrados numa torre de marfim, através das suas máquinas político-administrativas. E depois da crise de 2008, as populações, passaram a olhar para Bruxelas com profunda desconfiança. E a União continua a adiar a introspeção necessária para fazer face a este problema.

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Em segundo lugar, bem sabemos nós em Portugal que a crise não afetou todos os estados por igual. A Grã-Bretanha também introduziu medidas de austeridade, é certo, mas nada que se compare ao que aconteceu aqui. Mas os portugueses sabem que a sua consolidação democrática nos anos 1980 e 1990 se deveu, em muito, à entrada na então CEE que, quanto mais não fosse, proporcionava um ambiente internacional propício ao processo de mudança de regime e fundos para transformar o país num espaço moderno apto a pertencer ao clube europeu da paz e da prosperidade. Na Grã-Bretanha não há esta lógica. Como explica Timothy Garton Ash, num livro já velhinho, o Reino Unido teve sempre uma “Cara de Janus” a olhar para lados opostos. Daí a dificuldade de reconciliar a sua pertença à Europa (que para muitos dos cidadãos, lhes tira mais do que dá) com os restos de um certo saudosismo isolacionista e com a sua relação especial como os Estados Unidos. Não é, pois, de estranhar que o euroceticismo britânico tenha sido elevado ao longo da história e se tenham agudizado no momento de crise.

O terceiro ponto, é a forma de fazer política adotada nos últimos anos. Temos-lhe chamado populismo, sem esclarecimento adicional. Pois aqui vai. O populismo é, acima de tudo um método, que, tal como a democracia, tem um determinado espírito – a ideia central de que a sociedade está profundamente errada, dividida e tem de ser recuperada para o povo “genuíno”. É uma forma particular de fazer política, que apela aos medos e explora os descontentamentos das populações, e vem unida a uma ou mais ideologias (extrema direita, extrema esquerda, nacionalismo, nativismo, socialismo, entre outras), num discurso político simples, politicamente incorreto, e/ou criação de uma narrativa alternativa que tem raízes no passado, e não tem aplicação no futuro. Promete respostas rápidas para problemas complexos. Visto desta forma, há agentes, movimentos e partidos populistas, e agentes movimentos e partidos moderados, que usam, uma vez por outra, métodos populistas para obterem vitórias eleitorais. Especialmente em momentos que enfrentam forças populistas – neste caso, nacionalistas – que ganham terreno nas intenções de voto.

Terá sido este fenómeno que levou o desgastado David Cameron a fazer a promessa eleitoral (populista, com o intuito de vencer as eleições) que nunca devia ter feito. Cedeu a pressões sociais e prometeu um referendo à permanência do Reino Unido na União Europeia. O que se seguiu foi uma campanha intempestiva, que teve como tema central a “recuperação da nacionalidade” dos monstros internacionais que coibiam o Reino Unido de viver em pleno a sua soberania e grandeza, que impediam a Grã-Bretanha de praticar o mercado livre (que no caso britânico é quase uma ideologia) nos termos que lhe fossem verdadeiramente favoráveis. As caras da campanha pelo “não”, Nigel Farage e Boris Johnson, prometiam um Reino Unido renovado, soberano, com menos imigrantes, e ao mesmo tempo inspirado na época do “golden standard”, já morto e enterrado, e sem qualquer hipótese de ressuscitar, dado a posição geopolítica britânica.

O que é certo é que estas três razões interligadas seduziram metade dos britânicos. Um eleitorado, que mais não é que gente como nós (que abrange a classe média e as classes mais baixas, ainda que esteja mais concentrado nas zonas rurais) com preocupações sociais e económicas a preencherem-lhe o pensamento e com sentimentos de que só uma mudança profunda pode restituir-lhes a segurança e a prosperidade.

É uma ilusão. Apesar do discurso otimista de ontem de Theresa May no parlamento – sobre um novo início para a Grã-Bretanha, ainda que com os mesmos valores da democracia liberal partilhados com a Europa, que não vai ser abandonada – retrospetivamente tudo prece ter sido uma sucessão de contrassensos. Cameron a prometer um referendo para ganhar as eleições de 2015. Farage e Johnson a prometer um futuro que não existe em 2016. May, que sempre defendeu a permanência, a exaltar as qualidades da saída em 2017.

Por mais voltas que se dê, de ontem podem tirar-se duas conclusões: que as medidas populistas ganharam, e o preço a pagar é entrar por caminhos desconhecidos que, desconfio, podem ter maus resultados. Mas podemos fazer todas as previsões que quisermos. A verdade é que o futuro não se adivinha, e o que aí vem, depois do artigo 50, é uma incógnita.