A “geringonça” funciona, diz o primeiro-ministro. Talvez. Mas a que custo? Começámos a descobrir ontem: segundo a Comissão Europeia, o Estado português não vai, este ano, conseguir dar aos seus credores provas de que está a evoluir na direcção de finanças sustentáveis, isto é, de que não precisará de continuar a abusar do crédito para pagar salários, pensões e serviços. Há quem esteja convencido de que este caminho de previsões formidáveis, derrapagem na despesa e medidas adicionais só pode culminar num desastre, sob a forma apocalíptica de um novo resgate, como em 2011.

Talvez convenha admitir que não. O governo parece esperar que a União Europeia, carregando mais ou menos na “austeridade”, nunca deixará cair Portugal, como ainda não deixou cair a Grécia. Tudo seria, portanto, uma questão de malabarismo. E há condições para esse malabarismo. Na última sexta-feira, na Assembleia da República, com cinco anos de atraso, o PCP e o BE aprovaram finalmente o PEC 4 – através do expediente de impedir que houvesse votação. Em Março de 2011, comunistas e bloquistas abraçaram-se com a direita para derrubar o PS; agora, escolheram o governo e os seus PEC. António Costa pode assim reatar com o tipo de governação que José Sócrates iniciou em 2010: uma escalada de Programas de Estabilidade (entre 2010 e 2011, foram quatro em pouco mais de um ano), enquanto ao mesmo tempo anuncia “qualificações” e “investimentos”. Vai ser o socratismo sem Sócrates, mas com Jerónimo de Sousa e Catarina Martins.

Em 2011, com os mercados à solta, a maré dos juros subiu e houve que deitar mão à boia da Troika. Mas este ano, com os mercados a dormir o sono do BCE, o ambiente é mais propício. Agora, quando as obrigações a 10 anos sobem “vertiginosamente”, andam nos 3%; em 2011, a média foi de 13%. Nestes números, está tudo o que é preciso saber sobre o funcionamento da geringonça: há a folga que faltou em 2011 para maquilhar a austeridade.

As facturas vão aparecendo, como a do imposto sobre os produtos petrolíferos. Mas por enquanto, chega a cuidadosa separação entre o que se diz em público em Portugal e o que se diz em segredo na Europa. Já foi a estratégia de Sócrates em 2010-2011. E quando se tornar óbvio que o crescimento económico nunca será mais do que uma previsão estival e for necessário largar as repartições de finanças às canelas do país? Que se faz então? Faz-se o que tem feito o Syriza: um confronto arrastado com a Europa, sem rupturas mas com muita atitude, de modo a trespassar as responsabilidades para Bruxelas e a empurrar todos os críticos para a esquina vergonhosa da traição à pátria. A certa altura, a população cansar-se-á. Mas cansar-se-á com todos, e não apenas com o governo, o que dará à geringonça margem para persistir, como o Syriza na Grécia.

O que é pior? Em 2011, o plano da Troika tinha muitas asperezas, mas prometia a redenção, uma vez cumpridas certas metas (que andaram sempre a ser revistas). Era suposto ser um tormento com prazo definido. O plano do Syriza tem mais a ver com o mito de Sísifo: é a crise como nova normalidade, e a luta como modo de vida. Tal como a Grécia, teremos Portugal oficialmente declarado um caso perdido, um país onde um europeu do norte poderá passar férias de praia ou um fundo de risco americano realizar algum lucro desesperado, mas que de resto servirá apenas para o PCP e o BE nunca mais acabarem de ter razão sobre a perversidade do “imperialismo europeu”. Já o disse: os portugueses estão destinados a descobrir que há destinos piores do que o do resgate de 2011.

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