Na quarta-feira, à hora de almoço, li de relance os títulos dos “alertas” das apps de informação que, como tanta gente, tenho instaladas no smartphone. Quando alguma coisa de relevante acontece parece uma sinfonia de “pi pi” consecutivos que nos anunciam o que está a acontecer. Desta vez eram só media portugueses e, portanto, o motivo da urgência era nacional. Anunciava-se, em tom grave, que o Banco de Portugal estava mais pessimista em relação ao andamento da economia, que tinha cortado as previsões, que a economia ia, afinal, crescer menos do que estava previsto.

Ontem, quinta-feira, a mesma coisa. O tema continuava a ser economia mas desta vez o protagonista era o Governo, mais precisamente o ministro das Finanças. Os alertas voltavam a cair à hora de almoço e diziam que havia uma derrapagem no défice, que iam ser necessárias medidas extraordinária para o cumprir, que o Conselho de Ministros tinha sido dedicado ao tema.

Num como no outro dia, com uma conferência e algumas reuniões na agenda, só à noite consegui olhar para os números para perceber a extensão das desgraças.

Fiquei desiludido. Isto não são desgraças que se apresentem. Os números do Banco de Portugal mostram um ajuste de uma décima para este ano e de duas décimas no crescimento previsto para os próximos dois anos. Uma e duas décimas? Em previsões? Quando, ainda por cima, os técnicos não dispõem de uma peça fundamental e com impacto nas previsões como é o Orçamento do Estado? Não vale sequer a pena tirar conclusões sobre o assunto. Será por causa do novo governo? Do velho governo? Da Alemanha? Do terrorismo?

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Vá lá, prever que a economia cresce 1,6% em vez de 1,7% é um ajustamento de arredondamentos. E as duas décimas dos próximos anos resolvem-se se os chineses decidirem comprar mais dois navios de automóveis da Autoeuropa.

Mais desiludido ainda fiquei ontem com a alegada derrapagem das contas públicas deste ano. Já preparado para sacar do livro de cheques para pagar mais impostos para tapar o “buraco” – afinal, tem sido essa a nossa vida desde 2010 -, fui à procura das notícias que me informassem sobre o epicentro e a magnitude do terramoto. E encontrei isto: congelamento de processos pendentes de descativações e transições de saldo de gerência não urgentes; o novo Governo compromete-se a não assumir novos compromissos financeiros não urgentes até ao final do ano; e há uma redução dos fundos disponíveis das administrações públicas em 46 milhões de euros.

Afinal, a emergência orçamental resolve-se de forma simples: basta accionar os mecanismos que já estavam previstos, não permitindo que se gastem verbas já cativadas, e que não se assumam novos compromissos. Ou seja, para cumprir o défice não se pode gastar mais dinheiro do que estava previsto. E achamos isto dramático e extraordinário.

Podemos olhar para isto como mais um daqueles exercícios típicos da época de mudança de governos, em que o que entra diaboliza e dramatiza a herança que lhe deixou o que sai. Uma espécie de “vocês deixaram o país de tanga” de Durão Barroso, de “o défice real é de 6,83%” de Sócrates ou de “deixaram o país na bancarrota e chamaram a troika” de Passos.

E tem todo o aspecto de o ser. Mas é muito positivo que estejamos a fazer todo este alarido por uma derrapagem de 46 milhões de euros, o equivalente a – o leitor está bem sentado? – qualquer coisa como 0,03% do PIB. Se as contas forem rigorosas, Mário Centeno encontrou um défice de 3,03% do PIB e teve que o ajustar para 3,00%.

Sem ironia, é um excelente sinal que se eleve ao estatuto de indignação política e orçamental um desvio desta grandeza. Isso quer dizer que o país está mais rigoroso, mais exigente, mais alerta sobre a gestão orçamental e que se irrita quando tudo não bate certo como o melhor dos relógios suíços. É como se houvesse uma chuva de protestos na CP quando um comboio chega com um minuto de atraso.

Repare-se no contraste com o que se passava no início da década. Em 2010 o país bateu todos os recordes de desvios orçamentais. Já o ano tinha terminado e José Sócrates, então primeiro-ministro, anunciava ao país que o défice tinha ficado “claramente abaixo dos 7,3% previstos” porque tinha sido apurada uma folga orçamental de 800 milhões de euros. Mais tarde apurou-se que afinal o défice real tinha sido de 11,2%. A derrapagem foi de 3,9 pontos percentuais até porque, como sabemos, o contexto económico e orçamental de então era muito difícil.

Hoje ainda é muito exigente, mas há uma enorme diferença entre o quase total descontrolo de então e o controlo quase absoluto de hoje. A divergência orçamental que hoje nos indigna é 130 vezes menor do que as que tínhamos há poucos anos.

Isso quer dizer que muita coisa mudou entretanto. Na gestão orçamental, no controlo que há sobre as contas públicas mas, sobretudo, na forma como políticos, comunicação social e pelo menos alguma opinião publicada olha para estes temas. Hoje estamos mais alemães na noção de que as contas do Estado têm que ser equilibradas, bater certo e cumprir as metas. E isso é uma óptima notícia. Outra excelente notícia seria que o governo mantivesse este nível de elevada exigência quando executar os orçamentos que vai fazer.

Jornalista, pauloferreira1967@gmail.com